Em Macau, a expressão “indústrias culturais”
entrou nos discursos oficiais, salvo erro, em 2006. Na altura, o programa
despachava-se em poucas linhas: “(...) encontrar uma fórmula que integre
organicamente os elementos culturais de Macau com as oportunidades de
desenvolvimento empresarial, apresentando e divulgando as linhas de
desenvolvimento da indústria cultural consentâneas com as realidades de Macau.”
De forma mais simples, o que este excerto das Linhas de Acção Governativa para
2007 quer dizer é, somente, que se pretende aproveitar o património cultural
para fazer dinheiro.
A peregrina ideia teve o condão de entusiasmar
tanto os empresários – que assim podiam explorar sem limites ou remorsos (se os
tivessem) e com o beneplácito do Palácio (e o dinheiro, adivinhava-se) a
materialização do sacrossanto legado espiritual da história local –, como os
“agentes culturais”, que, aqui, se dividem numa infinita e diligente rede de
associações lançada a arrastar os subsídios e apoios que vão chovendo.
A “fórmula” apelava também às boas
consciências da “intelligentsia” indígena, que via na “integração orgânica dos
elementos culturais de Macau com as oportunidades de desenvolvimento
empresarial” uma oportunidade para a tão almejada “diversificação económica”, a
salvação da indústria do jogo, esse terrível mal que tem enchido os cofres do
Governo.
Passou tempo e, como sempre, criou-se um
conselho consultivo e um fundo. Sete anos depois, ainda não se percebeu ao
certo o que são indústrias culturais e criativas, e enquanto se fazem reuniões
onde todos juntos contemplam o vazio, há que assegurar que não falta o que
realmente importa: dinheiro.
Até agora, ao fim de incontáveis estudos,
reuniões e discursos, é o que se sabe: o Governo tem 200 milhões que serão
distribuídos por subsídios a fundo perdido, ou empréstimos sem juros, “para
apoiar projectos e a exploração de produtos tangíveis e intangíveis”.
Mas nem isto, que é tudo o que de concreto
existe, vem acrescentar o que quer que seja ao que já havia – em Macau, nunca
faltaram “mecanismos de dar dinheiro”.
Também ainda não se sabe qual será o impacto das indústrias culturais na economia de Macau, quantos postos de trabalho devem ser criados ou que peso o sector possa ter no PIB, como confessou Banny Chao, nomeado administrador do fundo. Não há previsões porque está tudo numa “fase inicial”.
No meio da confusão, vai-se prometendo
dinheiro a quem pedir, não faltando interessados, “designers”, produtores de
cinema e de música. Por indústrias culturais e criativas, aqui, entende-se o
negócio dos “souvenirs”, os filmes e os discos.
E assim, em vez de se começar pelo princípio,
ou seja, pela cultura, começa-se pelo fim, pela sua industrialização. Em vez de
se criarem escolas, oferece-se dinheiro para os pretendentes a artistas vazarem
as suas importantes “criações” e locais próprios e exclusivos para a população
as poder apreciar – presume-se que agradecida e extasiada.
Com tanta desarrumação, talvez convenha
lembrar que a expressão “indústrias culturais” apareceu pela primeira vez em
1947, no livro “Dialéctica do Esclarecimento”, de Theodor Adorno e Marx
Horkheimer. Adorno explicaria mais tarde que, inicialmente, a expressão usada
era “cultura de massas”, substituída por “indústrias culturais” para evitar
mal-entendidos de que se tratava de algo que “emana espontaneamente das
próprias massas”, avisando que devia ser feita a distinção entre “indústrias
culturais” e “formas contemporâneas de cultura popular” – em todas as vertentes
das indústrias culturais, escreve o pensador alemão, os produtos que são
talhados para o consumo massificado e que, em grande medida, determinam eles
próprios a natureza desse consumo, são fabricados mais ou menos de acordo com
um plano.
Não se trata da clássica oposição entre
elitismo e uma cultura acessível (?!) a todos. Não vale a pena, também,
discorrer sobre o que significam e o que dizem de uma sociedade que (só)
consome os produtos desta indústria.
Mas a própria expressão “indústria cultural”,
pelo menos, deveria suscitar uma ou outra dúvida. O que se pode esperar de uma
indústria senão a massificação, a produção em série, a uniformização, o baixo
custo de produção, a maximização do lucro e, claro, a poluição?
É fácil estampar camisolas, canecas e
guarda-chuvas e chamar-lhe indústria cultural e criativa. Mas o que uma cidade
como Macau, com a história, a cultura e o património que tem, precisa mesmo é
de transformar tudo isso em produtos industrializados, em vez de produtos
culturais? A resposta, decide quem manda, é afirmativa.
Não nos devemos espantar. Aqui, quando se fala
de preencher necessidades e desejos – um possível desígnio a que pode aspirar a
arte e a cultura – pensa-se em dinheiro. De preferência, a fundo perdido.
Publicado no jornal Hoje Macau em Janeiro de 2014
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