domingo, 9 de agosto de 2015

Fundo perdido

Em Macau, a expressão “indústrias culturais” entrou nos discursos oficiais, salvo erro, em 2006. Na altura, o programa despachava-se em poucas linhas: “(...) encontrar uma fórmula que integre organicamente os elementos culturais de Macau com as oportunidades de desenvolvimento empresarial, apresentando e divulgando as linhas de desenvolvimento da indústria cultural consentâneas com as realidades de Macau.” De forma mais simples, o que este excerto das Linhas de Acção Governativa para 2007 quer dizer é, somente, que se pretende aproveitar o património cultural para fazer dinheiro.

A peregrina ideia teve o condão de entusiasmar tanto os empresários – que assim podiam explorar sem limites ou remorsos (se os tivessem) e com o beneplácito do Palácio (e o dinheiro, adivinhava-se) a materialização do sacrossanto legado espiritual da história local –, como os “agentes culturais”, que, aqui, se dividem numa infinita e diligente rede de associações lançada a arrastar os subsídios e apoios que vão chovendo.

A “fórmula” apelava também às boas consciências da “intelligentsia” indígena, que via na “integração orgânica dos elementos culturais de Macau com as oportunidades de desenvolvimento empresarial” uma oportunidade para a tão almejada “diversificação económica”, a salvação da indústria do jogo, esse terrível mal que tem enchido os cofres do Governo.

Passou tempo e, como sempre, criou-se um conselho consultivo e um fundo. Sete anos depois, ainda não se percebeu ao certo o que são indústrias culturais e criativas, e enquanto se fazem reuniões onde todos juntos contemplam o vazio, há que assegurar que não falta o que realmente importa: dinheiro.
Até agora, ao fim de incontáveis estudos, reuniões e discursos, é o que se sabe: o Governo tem 200 milhões que serão distribuídos por subsídios a fundo perdido, ou empréstimos sem juros, “para apoiar projectos e a exploração de produtos tangíveis e intangíveis”.

Mas nem isto, que é tudo o que de concreto existe, vem acrescentar o que quer que seja ao que já havia – em Macau, nunca faltaram “mecanismos de dar dinheiro”. 

Também ainda não se sabe qual será o impacto das indústrias culturais na economia de Macau, quantos postos de trabalho devem ser criados ou que peso o sector possa ter no PIB, como confessou Banny Chao, nomeado administrador do fundo. Não há previsões porque está tudo numa “fase inicial”.

No meio da confusão, vai-se prometendo dinheiro a quem pedir, não faltando interessados, “designers”, produtores de cinema e de música. Por indústrias culturais e criativas, aqui, entende-se o negócio dos “souvenirs”, os filmes e os discos.

E assim, em vez de se começar pelo princípio, ou seja, pela cultura, começa-se pelo fim, pela sua industrialização. Em vez de se criarem escolas, oferece-se dinheiro para os pretendentes a artistas vazarem as suas importantes “criações” e locais próprios e exclusivos para a população as poder apreciar – presume-se que agradecida e extasiada.

Com tanta desarrumação, talvez convenha lembrar que a expressão “indústrias culturais” apareceu pela primeira vez em 1947, no livro “Dialéctica do Esclarecimento”, de Theodor Adorno e Marx Horkheimer. Adorno explicaria mais tarde que, inicialmente, a expressão usada era “cultura de massas”, substituída por “indústrias culturais” para evitar mal-entendidos de que se tratava de algo que “emana espontaneamente das próprias massas”, avisando que devia ser feita a distinção entre “indústrias culturais” e “formas contemporâneas de cultura popular” – em todas as vertentes das indústrias culturais, escreve o pensador alemão, os produtos que são talhados para o consumo massificado e que, em grande medida, determinam eles próprios a natureza desse consumo, são fabricados mais ou menos de acordo com um plano.

Não se trata da clássica oposição entre elitismo e uma cultura acessível (?!) a todos. Não vale a pena, também, discorrer sobre o que significam e o que dizem de uma sociedade que (só) consome os produtos desta indústria.

Mas a própria expressão “indústria cultural”, pelo menos, deveria suscitar uma ou outra dúvida. O que se pode esperar de uma indústria senão a massificação, a produção em série, a uniformização, o baixo custo de produção, a maximização do lucro e, claro, a poluição?

É fácil estampar camisolas, canecas e guarda-chuvas e chamar-lhe indústria cultural e criativa. Mas o que uma cidade como Macau, com a história, a cultura e o património que tem, precisa mesmo é de transformar tudo isso em produtos industrializados, em vez de produtos culturais? A resposta, decide quem manda, é afirmativa.


Não nos devemos espantar. Aqui, quando se fala de preencher necessidades e desejos – um possível desígnio a que pode aspirar a arte e a cultura – pensa-se em dinheiro. De preferência, a fundo perdido.

Publicado no jornal Hoje Macau em Janeiro de 2014

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