Através da linguagem construímos o mundo. A
esta frase podemos e devemos acrescentar pronomes possessivos e, desse modo,
diremos que, através da nossa linguagem construímos o nosso mundo.
Isto
significa que o nosso mundo vai depender da nossa linguagem. É certo e sabido
que entre o mundo (nosso ou não) e a linguagem (qualquer que ela seja) haverá
sempre uma discrepância do tamanho do universo que nos impedirá de “dizer”
completamente o mundo (seja lá o que isto for), mas é igualmente evidente (e
algum consolo) que quanto maior for a (nossa) linguagem, maior o (nosso) mundo.
Além de servir para dizer, para fazer, a
linguagem funciona também no sentido inverso e serve igualmente para receber. A
linguagem molda. Ajuda-nos a entender. A percepcionar. A manipular e a ser
manipulado. E assim ela surge como instrumento primordial de propaganda, de
difusão massiva de uma ideia, ideologia ou opinião.
Em Portugal, por exemplo, o actual governo tem
mostrado dotes e habilidades notáveis para “designar realidades negativas”,
como têm mostrado colunistas como Pacheco Pereira ou José Vítor Malheiros,
entre outros. Explica-se, assim, que encontremos “austeridade” em vez de
“empobrecimento”, “poupanças” ou “rigor orçamental” em vez de “cortes”, “requalificação”
em vez de “despedimentos”, ou, mais recentemente, “recalibrar” em vez
“aumentar” (os cortes, pois claro), e ainda a inofensiva expressão “almofada
financeira” para o “pós-troika”, ou seja, uma nova série de medidas de
“austeridade” (leia-se “empobrecimento”) para quando acabar a actual, o tal
“programa cautelar”.
Todo este léxico se tornou vulgar na
comunicação social portuguesa. Ajudará também aos intentos do governo, como
nota Pacheco Pereira, “a habitual servidão aos lugares-comuns” dos “media”, que
assim contribuem para “institucionalizar” uma linguagem que, seguindo o
princípio eufemístico de chamar “propaganda” à manipulação, podemos também
afirmar que redunda numa coisa mais simples e mais directa: a mentira. E “uma
mentira mil vezes repetida torna-se verdade”, como dizia Joseph Goebbels, o
sinistro ministro da Propaganda de Hitler.
As máquinas propagandistas são comuns a todos
os governos. Macau não é excepção, ainda que, neste capítulo, aqui tenhamos
apenas “aprendizes de feiticeiros”, se comparados com o que se passa na “mãe
pátria”, onde até o escopo da “narrativa” tem, literalmente, o céu por limite
(o espaço é a “nova fronteira”), e se fala insistentemente, por estes dias, da
“concretização do sonho chinês de revitalização da nação chinesa”.
Na Região Administrativa Especial, o discurso
é mais modesto. Básico, se nos dispusermos, por momentos, a deixar os
eufemismos de lado.
Aqui, “dar dinheiro” é um “plano de
comparticipação pecuniária”; criar conselhos consultivos que juntam dezenas de
“cérebros” e encomendar relatórios e estudos corresponde a “governação
científica”; fazer com que a economia de Macau não dependa em mais de 80 por
cento do contributo da indústria do jogo, ao mesmo tempo que se dá dinheiro e
se estuda infinitamente, é “diversificação adequada da economia”; garantir que
os casinos continuam a encher os cofres onde o Governo guarda as reservas
financeiras chama-se, aqui, “desenvolvimento sustentável”; alargar o tamanho do
território sem construir mais aterros, ocupando gradualmente baldios das
cidades vizinhas, designa-se por “cooperação regional”; “plataforma”, que os
dicionários também dizem ter o significado de “simulacro” e “aparência”, é
exactamente isso: uma ilusão – de movimento e de mudança de direcção. E é uma ilusão
aquilo que a linguagem composta, pomposa, pretende criar – a ideia de que há
pensamento e trabalho por detrás das fórmulas repetidas até à exaustão,
supostamente conferindo uma aura grave e séria que toda a acção governativa
supostamente deve ter.
Nos discursos oficiais, é também difícil
escapar à profusão de verbos indicando “continuidade”, nunca uma ruptura ou um
corte com o que já existe e que, mesmo que seja mau, há-de existir. O princípio
é atribuir uma “sequência”, um “fio” ao que está a ser feito e que se inscreve
num “plano duradouro” – dura e vai durar –, ao mesmo tempo que se resolve o
“salvar da face” de quem esteve antes na posição de “discursar”. Uma espécie de
“cortesia” para com o(s) anterior(es) Executivo(s).
Assim, temos uma torrente interminável:
“envidar esforços”, “aumentar”, “reforçar”, “impulsionar”, “desenvolver”, “acelerar”, “optimizar”,
“aperfeiçoar”, “melhorar”, “elevar”, “promover” (às vezes “continuamente”), ou
“aprofundar”, entre muitos outros sinónimos, todas palavras que não marcam
qualquer cisão nem encetam nada de novo e que, sugerindo um movimento contínuo,
na verdade, escondem a paralisia e o bloqueio, que por sua vez encobrem a falta
de ideias e de vontade, cujos mais vagos assomos são esmagados pelo exagero do
uso de expressões temporais indefinidas, entre as quais reina o “longo prazo”.
Claro que nada deste discurso que se ouve em
Macau tem a carga negativa, pérfida e ardilosa daquele que se ouve em Portugal,
um país arrastado para o fundo por um governo dedicado à extorsão em nome de
uma “Europa” indiferente, e que escolhe como alvo os mais vulneráveis e os mais
desprotegidos de entre estes, os mais velhos, já pensionistas, ao mesmo tempo
que vai beneficiando os privilegiados do costume, os “grandes empreendedores” e
os “neo-liberais” que estão sempre contra o Estado mas dele dependem para tudo,
e que vão polindo a “cobertura ideológica” das medidas, e justificando as
“imperativas necessidades”.
No entanto, apesar da aparente “mansidão” do
discurso ouvido em Macau, há a temer (além do insuportável datismo) o vazio e
consequente adiamento do futuro. A inércia, aqui, não é sintoma de preguiça ou
apatia. É algo mais profundo. Mais grave. É isso que diz o que a linguagem não
diz.
Publicado no jornal Hoje Macau em Janeiro de 2014
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