domingo, 9 de agosto de 2015

O que a linguagem não diz

Através da linguagem construímos o mundo. A esta frase podemos e devemos acrescentar pronomes possessivos e, desse modo, diremos que, através da nossa linguagem construímos o nosso mundo. 

Isto significa que o nosso mundo vai depender da nossa linguagem. É certo e sabido que entre o mundo (nosso ou não) e a linguagem (qualquer que ela seja) haverá sempre uma discrepância do tamanho do universo que nos impedirá de “dizer” completamente o mundo (seja lá o que isto for), mas é igualmente evidente (e algum consolo) que quanto maior for a (nossa) linguagem, maior o (nosso) mundo.

Além de servir para dizer, para fazer, a linguagem funciona também no sentido inverso e serve igualmente para receber. A linguagem molda. Ajuda-nos a entender. A percepcionar. A manipular e a ser manipulado. E assim ela surge como instrumento primordial de propaganda, de difusão massiva de uma ideia, ideologia ou opinião.

Em Portugal, por exemplo, o actual governo tem mostrado dotes e habilidades notáveis para “designar realidades negativas”, como têm mostrado colunistas como Pacheco Pereira ou José Vítor Malheiros, entre outros. Explica-se, assim, que encontremos “austeridade” em vez de “empobrecimento”, “poupanças” ou “rigor orçamental” em vez de “cortes”, “requalificação” em vez de “despedimentos”, ou, mais recentemente, “recalibrar” em vez “aumentar” (os cortes, pois claro), e ainda a inofensiva expressão “almofada financeira” para o “pós-troika”, ou seja, uma nova série de medidas de “austeridade” (leia-se “empobrecimento”) para quando acabar a actual, o tal “programa cautelar”.

Todo este léxico se tornou vulgar na comunicação social portuguesa. Ajudará também aos intentos do governo, como nota Pacheco Pereira, “a habitual servidão aos lugares-comuns” dos “media”, que assim contribuem para “institucionalizar” uma linguagem que, seguindo o princípio eufemístico de chamar “propaganda” à manipulação, podemos também afirmar que redunda numa coisa mais simples e mais directa: a mentira. E “uma mentira mil vezes repetida torna-se verdade”, como dizia Joseph Goebbels, o sinistro ministro da Propaganda de Hitler.

As máquinas propagandistas são comuns a todos os governos. Macau não é excepção, ainda que, neste capítulo, aqui tenhamos apenas “aprendizes de feiticeiros”, se comparados com o que se passa na “mãe pátria”, onde até o escopo da “narrativa” tem, literalmente, o céu por limite (o espaço é a “nova fronteira”), e se fala insistentemente, por estes dias, da “concretização do sonho chinês de revitalização da nação chinesa”.

Na Região Administrativa Especial, o discurso é mais modesto. Básico, se nos dispusermos, por momentos, a deixar os eufemismos de lado.

Aqui, “dar dinheiro” é um “plano de comparticipação pecuniária”; criar conselhos consultivos que juntam dezenas de “cérebros” e encomendar relatórios e estudos corresponde a “governação científica”; fazer com que a economia de Macau não dependa em mais de 80 por cento do contributo da indústria do jogo, ao mesmo tempo que se dá dinheiro e se estuda infinitamente, é “diversificação adequada da economia”; garantir que os casinos continuam a encher os cofres onde o Governo guarda as reservas financeiras chama-se, aqui, “desenvolvimento sustentável”; alargar o tamanho do território sem construir mais aterros, ocupando gradualmente baldios das cidades vizinhas, designa-se por “cooperação regional”; “plataforma”, que os dicionários também dizem ter o significado de “simulacro” e “aparência”, é exactamente isso: uma ilusão – de movimento e de mudança de direcção. E é uma ilusão aquilo que a linguagem composta, pomposa, pretende criar – a ideia de que há pensamento e trabalho por detrás das fórmulas repetidas até à exaustão, supostamente conferindo uma aura grave e séria que toda a acção governativa supostamente deve ter.

Nos discursos oficiais, é também difícil escapar à profusão de verbos indicando “continuidade”, nunca uma ruptura ou um corte com o que já existe e que, mesmo que seja mau, há-de existir. O princípio é atribuir uma “sequência”, um “fio” ao que está a ser feito e que se inscreve num “plano duradouro” – dura e vai durar –, ao mesmo tempo que se resolve o “salvar da face” de quem esteve antes na posição de “discursar”. Uma espécie de “cortesia” para com o(s) anterior(es) Executivo(s).
Assim, temos uma torrente interminável: “envidar esforços”, “aumentar”, “reforçar”, “impulsionar”,  “desenvolver”, “acelerar”, “optimizar”, “aperfeiçoar”, “melhorar”, “elevar”, “promover” (às vezes “continuamente”), ou “aprofundar”, entre muitos outros sinónimos, todas palavras que não marcam qualquer cisão nem encetam nada de novo e que, sugerindo um movimento contínuo, na verdade, escondem a paralisia e o bloqueio, que por sua vez encobrem a falta de ideias e de vontade, cujos mais vagos assomos são esmagados pelo exagero do uso de expressões temporais indefinidas, entre as quais reina o “longo prazo”.

Claro que nada deste discurso que se ouve em Macau tem a carga negativa, pérfida e ardilosa daquele que se ouve em Portugal, um país arrastado para o fundo por um governo dedicado à extorsão em nome de uma “Europa” indiferente, e que escolhe como alvo os mais vulneráveis e os mais desprotegidos de entre estes, os mais velhos, já pensionistas, ao mesmo tempo que vai beneficiando os privilegiados do costume, os “grandes empreendedores” e os “neo-liberais” que estão sempre contra o Estado mas dele dependem para tudo, e que vão polindo a “cobertura ideológica” das medidas, e justificando as “imperativas necessidades”.

No entanto, apesar da aparente “mansidão” do discurso ouvido em Macau, há a temer (além do insuportável datismo) o vazio e consequente adiamento do futuro. A inércia, aqui, não é sintoma de preguiça ou apatia. É algo mais profundo. Mais grave. É isso que diz o que a linguagem não diz.

Publicado no jornal Hoje Macau em Janeiro de 2014 

Sem comentários:

Enviar um comentário