sábado, 8 de agosto de 2015

Requiem para um novo mundo


Em entrevista recente à Al Jazeera, o filósofo esloveno Slavoj Zizek expressava o desencanto: triste mundo este que oscila entre o “liberalismo anglo-saxónico” e o “capitalismo chinês-singapurense de valores asiáticos”. São as únicas alternativas que existem, lamentava Zizek, para quem a distância que vai da falência da democracia à inflação do autoritarismo encurta-se a passos largos.
A China, já se sabe, caminha veloz para tornar-se na economia mais poderosa; Singapura, com um misto de economia ultra-liberal e política musculada, é uma das mais dinâmicas sociedades capitalistas.

Com pouco mais de 130 quilómetros quadrados, a cidade-estado ostenta uma série de invejáveis títulos, entre os quais “4º centro financeiro mundial”, além de possuir um dos portos marítimos mais movimentados do globo. Banca internacional, poderosos advogados ao serviço da alta finança, corridas nocturnas de ‘fórmula 1’ e casinos megalómanos compõem um cenário que faz sonhar o mais empedernido dos especuladores bolsistas.

Todavia, por entre os arranha-céus que sobem como setas em gráficos financeiros e a algazarra dos milionários negócios que todos os dias, a todas as horas, são selados com apertos de mãos, serpenteia, insuspeita, uma música feita de murmúrios e de melodias de um lirismo de veludo que contrasta com o asfalto tremeluzente de reflectir os berrantes néon.

“Emanations of a New World” (Utech Records, 2010) foi o justo título que Leslie Low e Vivian Wang, ambos do grupo The Observatory, chamaram ao disco com que estrearam a dupla Arcn Temple.

São, de facto, “emanações de um novo mundo” que ouvimos ao longo das oito canções do disco, vapores que se desprendem criando o efeito de um outro universo, de uma Singapura diferente, ainda que o “novo mundo” seja, na verdade, uma referência ao passado, esse “país distante”, como alguém uma vez disse.

A matéria prima a partir da qual se fez “Emanations of a New World” é a memória de Leslie Low e Vivian Wang de quando eram crianças e visitavam o parque temático Haw Par Villa. Também conhecido por Tiger Balm Garden (foi construído pelos irmãos que criaram o célebre bálsamo-panaceia “Tiger Balm”), Haw Par tem como temas principais a mitologia e cultura popular chinesas, com reproduções que vão de aspectos da vida quotidiana a conceitos como o “inferno”, passando pelos inevitáveis ensinamentos de Confúcio.

De fantasia em fantasia, a música dos Arcn Temple leva-nos em viagem por diversos cantos da memória de Haw Par Villa, à boleia e ao som de folk de tonalidades negras, psicadelismo “soft”, sintetizadores sugestivos, “theremins” encantatórios, guitarras esparsas e vozes dispersas criando harmonias que conjuram quadros surrealistas que têm tanto de estranho quanto de belo.

Mesmo que nunca tenhamos posto um pé na terra imaginária dos Arcn Temple, ouvindo esta música não é difícil conceber os demónios e os guerreiros, as criaturas e os animais mitológicos, todos presos nesse país distante e passado, tentando libertar-se de um sonho onde tudo se move num tempo e num jeito diferentes.

À memória que os Arcn Temple guardam de Haw Par acrescentemos, ainda, as imagens actuais e reais do decrépito parque, hoje uma atracção em decadência, uma feira de bizarrias e um cemitério de estátuas longe dos tempos áureos em que as crianças aprendiam, entre o fascínio e o terror, modos de viver antigos. Sem querer, como num sonho, “Emanations of a New World” mantém-nos cativos num momento algures entre o passado, a memória desse tempo e o seu presente. Do futuro é que não se vislumbra nada, mas apenas porque existe a enorme possibilidade de já ter acontecido.

“Emanations of a New World”
Arcn Temple
Utech Records, 2010


Publicado no jornal Hoje Macau no dia 18 de Novembro de 2011 

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