Em entrevista recente à Al Jazeera, o filósofo
esloveno Slavoj Zizek expressava o desencanto: triste mundo este que oscila
entre o “liberalismo anglo-saxónico” e o “capitalismo chinês-singapurense de
valores asiáticos”. São as únicas alternativas que existem, lamentava Zizek,
para quem a distância que vai da falência da democracia à inflação do
autoritarismo encurta-se a passos largos.
A China, já se sabe, caminha veloz para
tornar-se na economia mais poderosa; Singapura, com um misto de economia
ultra-liberal e política musculada, é uma das mais dinâmicas sociedades
capitalistas.
Com pouco mais de 130 quilómetros quadrados, a
cidade-estado ostenta uma série de invejáveis títulos, entre os quais “4º
centro financeiro mundial”, além de possuir um dos portos marítimos mais
movimentados do globo. Banca internacional, poderosos advogados ao serviço da
alta finança, corridas nocturnas de ‘fórmula 1’ e casinos megalómanos compõem
um cenário que faz sonhar o mais empedernido dos especuladores bolsistas.
Todavia, por entre os arranha-céus que sobem
como setas em gráficos financeiros e a algazarra dos milionários negócios que
todos os dias, a todas as horas, são selados com apertos de mãos, serpenteia,
insuspeita, uma música feita de murmúrios e de melodias de um lirismo de veludo
que contrasta com o asfalto tremeluzente de reflectir os berrantes néon.
“Emanations of a New World” (Utech Records,
2010) foi o justo título que Leslie Low e Vivian Wang, ambos do grupo The
Observatory, chamaram ao disco com que estrearam a dupla Arcn Temple.
São, de facto, “emanações de um novo mundo”
que ouvimos ao longo das oito canções do disco, vapores que se desprendem
criando o efeito de um outro universo, de uma Singapura diferente, ainda que o
“novo mundo” seja, na verdade, uma referência ao passado, esse “país distante”,
como alguém uma vez disse.
A matéria prima a partir da qual se fez
“Emanations of a New World” é a memória de Leslie Low e Vivian Wang de quando
eram crianças e visitavam o parque temático Haw Par Villa. Também conhecido por
Tiger Balm Garden (foi construído pelos irmãos que criaram o célebre
bálsamo-panaceia “Tiger Balm”), Haw Par tem como temas principais a mitologia e
cultura popular chinesas, com reproduções que vão de aspectos da vida
quotidiana a conceitos como o “inferno”, passando pelos inevitáveis
ensinamentos de Confúcio.
De fantasia em fantasia, a música dos Arcn
Temple leva-nos em viagem por diversos cantos da memória de Haw Par Villa, à
boleia e ao som de folk de tonalidades negras, psicadelismo “soft”,
sintetizadores sugestivos, “theremins” encantatórios, guitarras esparsas e
vozes dispersas criando harmonias que conjuram quadros surrealistas que têm
tanto de estranho quanto de belo.
Mesmo que nunca tenhamos posto um pé na terra
imaginária dos Arcn Temple, ouvindo esta música não é difícil conceber os
demónios e os guerreiros, as criaturas e os animais mitológicos, todos presos
nesse país distante e passado, tentando libertar-se de um sonho onde tudo se
move num tempo e num jeito diferentes.
À memória que os Arcn Temple guardam de Haw
Par acrescentemos, ainda, as imagens actuais e reais do decrépito parque, hoje
uma atracção em decadência, uma feira de bizarrias e um cemitério de estátuas
longe dos tempos áureos em que as crianças aprendiam, entre o fascínio e o
terror, modos de viver antigos. Sem querer, como num sonho, “Emanations of a
New World” mantém-nos cativos num momento algures entre o passado, a memória
desse tempo e o seu presente. Do futuro é que não se vislumbra nada, mas apenas
porque existe a enorme possibilidade de já ter acontecido.
“Emanations
of a New World”
Arcn
Temple
Utech
Records, 2010
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