“It was
the best of times, it was the worst of times, it was the age of wisdom, it was
the age of foolishness, it was the epoch of belief, it was the epoch of
incredulity, it was the season of Light, it was the season of Darkness, it was
the spring of hope, it was the winter of despair, we had everything before us,
we had nothing before us, we were all going direct to Heaven, we were all going
direct the other way— in short, the period was so far like the present period,
that some of its noisiest authorities insisted on its being received, for good
or for evil, in the superlative degree of comparison only.”
Charles Dickens, “A Tale of Two Cities”
Diz-se que “A Tale of Two Cities” é o livro
mais lido de todos os tempos. Publicado em 1859, “História de duas cidades”, de
Charles Dickens, é daquelas obras, como “Romeu e Julieta” ou “D. Quixote de La
Mancha”, que atravessam tempos e sobre as quais qualquer pessoa parece ter uma
ideia ou outra, mesmo se delas nunca leu sequer uma linha. É e não é o meu
caso. Apesar de nunca ter lido Dickens (nem Shakespeare, penitencio-me, embora
já me tenha aventurado com Cervantes, ainda que sem a lealdade de um Sancho
Pança), conheço bem as primeiras palavras do seu “best-seller” (“It was the
best of times, it was the worst of times...”). A frase é tão perfeita, tão
simples, que diz quase tudo sem precisar de dizer mais nada. E deixa a pensar,
por exemplo, na natureza e na causa das coisas, em como tudo é divisível, como
no mesmo tempo convivem metades diferentes, às vezes havendo diferentes tempos
no mesmo espaço, que assim se decompõe por mais pequeno e ínfimo que pareça.
Em Macau, neste último mês de Fevereiro, foi
assim. Em apenas 28 dias, parece que quase tudo aconteceu e quase todos os
destinos se separaram, divididos pela mesma fatalidade que os unira. Como num
romance. De Dickens, às tantas.
Então, num muito mal amanhado jeito
“dickensiano” poderíamos também dizer: “Foi o melhor mês de sempre para os
casinos, foi o pior mês de sempre para associações de apoio a crianças, para
associações de solidariedade social e até associações de artistas...”
O melhor mês de sempre para o Governo de Macau
em termos de impostos directos sobre o jogo, a grande para não dizer única
fonte de receitas, foi um mês para esquecer para a Art For All, associação que
reúne uma boa parte dos artistas locais mais interessantes e que é responsável
por iniciativas arrojadas numa cidade em que não há mercado de arte e em que os
“eventos” raramente não se resumem a encontros onde os mesmos de sempre com as
mesmas lapelas enfeitadas de sempre se entretêm com uma “cultura” que não
provoca nem pensa, antes presta embasbacada devoção ao “giro” e ao
“espectacular” que não chega tão-pouco para distrair do blá blá blá ou dos
sorrisos de circunstância.
Segundo contou o jornal Ponto Final, a galeria
da AFA na Areia Preta, pelos vistos uma nova espécie de zona cinzenta do luxo
asiático, teve que fechar as portas devido a um aumento da renda de 163 por
cento. Sem dinheiro para estar de portas abertas em Macau, a associação
abandonou também a galeria que tinha em Pequim.
Aqui, numa terra onde não são precisos os
dedos de uma mão para contar os artistas que vivem do seu ofício, a AFA depende
dos apoios financeiros do Governo, que, no entanto, é acusado de não ter
qualquer calendário para os distribuir. Aparentemente, nem a única coisa que
fazem, dar o dinheiro arduamente arrecadado nos impostos sobre o jogo, é bem
feita.
Mais grave, soube-se ainda nesse mês de
Fevereiro em que o jogo voltou a bater um recorde absoluto que a escola da
Caritas em Coloane para crianças com necessidades especiais está na iminência
de encerrar devido ao aumento da renda superior ao dobro. À Rádio Macau, o
secretário-geral da instituição revelou ainda que também um centro para idosos
com demência está ameaçado pelo mesmo problema das rendas aumentadas pela
ganância sem freios dos senhorios, sem qualquer senso ou regra.
Gravíssimo, a Macau Child Development
Association, fundada por um grupo de pais e que acolhe 560 crianças com
autismo, entre outras dificuldades, confessava-se, nesse mês dos recordes, sem
soluções para os problemas crescentes que enfrenta e que se devem, sobretudo, à
falta de apoios. Nem há terapeutas que cheguem nem há dinheiro para as obras ou
para um novo contrato de arrendamento. “Macau devia ter vergonha”, disse a este
jornal a presidente da associação.
Foi também em Fevereiro que, talvez em nome da
“harmonia”, o Instituto de Acção Social propôs que a violência doméstica seja
um crime público apenas se as agressões forem “continuadas”. Não se sabe ao
certo o que isto significa, mas acredita-se que não bastam o medo, as ameaças,
a tortura psicológica nem sequer a violência física; as vítimas de um crime
particularmente cobarde, porque cometido geralmente dentro das paredes de um
lar contra os indefesos e vulneráveis, têm que sofrer não como se não houvesse
amanhã mas sim como se os amanhãs não servissem para outra coisa senão sofrer.
Triste.
No mês em que os casinos arrecadaram 38 mil
milhões de patacas em receitas brutas, mais 40 por cento do que no mesmo mês de
2013, o Governo anunciou que o salário mínimo para os trabalhadores de limpeza
e segurança de edifícios vai ser fixado em 28 patacas por hora, o que
corresponde a um salário mensal de 5824 patacas. Uma medida meramente simbólica
e sem outro objectivo que não o de apaziguar eventuais consciências, mais do
que (como deveria ser) ajudar devidamente quem dela beneficia, não serve sequer
para pintar uma pálida imagem de justiça social ou respeito por quem mais
precisa. Nada.
Os melhores e os piores tempos estão sempre a
cruzar-se nesta cidade cada vez mais dividida por desigualdades e por um dilema
cada vez mais irresolúvel que opõe “quantidade” a “qualidade”. Muitos falam em
“dores de crescimento”, mas o que mais
aflige são, na verdade, as dores de atrofiamento. Do que definha e do
que tolhe o desenvolvimento. Assim, sem mais nem menos.
Publicado no jornal Hoje Macau em Março de 2014
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