“É claro que o defeito é meu, mas tive a maior
dificuldade em adaptar-me a Macau.” Começa assim uma crónica que Eduardo Prado
Coelho escreveu para o Público. Foi em Junho de 2006. “Desilusão com Macau”,
lia-se no título. Prado Coelho lamentava ter encontrado no território, em vez
do “fascínio oriental, a sensualidade dos lugares e dos gestos, essa atmosfera
de In the Mood for Love”, “hordas ruidosas” que invadiam hotéis e casinos que
“procuram ser deslumbrantes e são a apoteose do kitsch na sua dimensão mais
obscena”, “um pesadelo de lama visual” numa cidade onde não há um só lugar que
nos permita ver passar as pessoas e olhar as nuvens que se acumulam”, mais
calor e humidade que “criam um sentimento de opressão que pode ser insuportável”.
Em suma, o cronista descobrira um lugar de “desolação, onde a doçura de viver
ou o ideal do socialismo se deixaram contaminar pelo lucro desmedido e a
incomunicabilidade generalizada”.
Como não podia deixar de ser, o texto foi mal
recebido em Macau. Nos jornais de língua portuguesa que o publicaram
escreveram-se editoriais inflamados. Eduardo Prado Coelho era um eurocêntrico
que se enganara no caminho, alguém que queria “o encantamento parisiense (ruas
com belíssimos cafés com espelhos e madeiras)”, que “não existe por estas
bandas”, como o próprio escreveu, e alguém que também se enganara no tempo,
pois “In The Mood for Love”, o filme de Wong Kar-wai, é passado nos anos 1960, lembraram-lhe.
Prado Coelho era, enfim, mais um dos que chegava da metrópole e que de uma
assentada tinha “percebido” o que aqueles que aqui estão há que tempos diziam não
ser possível perceber. Nada de novo.
Na altura, confesso, juntei-me voluntarioso ao
coro. Sentindo a dor de uma ofensa partilhada por outros que aqui haviam escolhido
viver, também eu, num momento em que começava a afeiçoar-me a uma terra ainda
muito desconhecida (hoje, passados oito anos, é apenas desconhecida), defendia
Macau, a divina musa, com indignação perante o insulto, expressando dessa forma
apego e amor. Assim julgava. Na realidade, o sentimento não passava de um simples
bairrismo. O bem-querer estava lá, mas era um arroubo adolescente. Pueril.
Eduardo Prado Coelho não se adaptou a Macau. E
então? Não gostou das “vozes esganiçadas e contundentes, criando uma atmosfera
de permanente agressão”, nem das mulheres que “parecem tábuas de engomar com
aquele andar de patas-chocas que define a gravidez avançada”, e que, “apesar de
mini-saias frequentes”, não têm “a menor sensualidade”.
Prado Coelho escreveu o que sentiu e o que
pensou. Sobre Macau, não perpetuou a “ponte de culturas” nem a “plataforma”, não
repetiu banalidades sobre a “lusofonia”. Limitou-se a expor talvez a
ingenuidade que criou expectativas que não serviram senão para se desiludir. Não
se apaixonou por uma “cidade única”. Desencantou-se. Acontece.
Mas nesta história (que não é história
nenhuma), o que mais lamento é que Eduardo Prado Coelho tinha razão. A sua
“desilusão” com Macau deplorava exactamente o mesmo que quem diz amar esta
terra vai lamuriando cada vez mais.
A cidade que o cronista do Público visitou e
onde, “em tantos lugares”, sentiu a falta da “calma, tranquilidade, uma espécie
de harmonia”, não era ainda a cidade dos 30 milhões de turistas por ano e dos
casinos que fazem cinco ou seis vezes mais dinheiro do que Las Vegas; a
arquitectura, “quase sempre esmagadora”, fazendo com que sintamos “o pouco que
somos andando pelas ruas - bicho da terra vil e tão pequeno”, ainda não nos
tinha oferecido a visão dos mastodontes casinos que se espalharam da península
até Coloane, uns meras cópias e outros originalmente medonhos; as “avenidas
intermináveis” não estavam ainda atafulhadas com os autocarros que se arrastam
pesadamente num trânsito desordenado pela incúria; as infindas obras que vão
remendando a falta de interesse e a capacidade para planear seja o que for
ainda não se tinham alastrado a todas as artérias, cada uma mais ocupada do que
outra por uma população que cresce a olhos vistos e que vira cada vez mais
cabisbaixa e cansada os olhos para o chão que continua a fugir. Macau ainda não
era Macau e o retrato estava tirado.
Não há uma segunda oportunidade para uma
primeira impressão, sabia Eduardo Prado Coelho. Mas nós que vivemos aqui em Macau
sabemos exactamente o contrário.
“É claro que o defeito é meu”.
Saudades, Eduardo. Saudades, Macau.
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