O despedimento colectivo no grupo que detém o
Diário de Notícias e o Jornal de Notícias, entre outros órgãos de comunicação
social, a que dediquei a crónica da semana passada, recuperou uma questão: a
morte dos jornais. Só que a morte dos jornais não é, de facto, só a morte dos
jornais. É mais do que isso.
É um lugar comum que encontramos muitas vezes:
que o jornalismo é fundamental para o funcionamento de sociedades e Estados
desenvolvidos, transparentes e democráticos. É verdade. Sem jornalismo, nada
disso está garantido, mas com o jornalismo também nada garante que isso, assim
sem mais nem menos, exista.
O jornalismo é preciso, mas também é preciso
que o jornalismo seja e faça muitas coisas que, infelizmente, para desgraça de todos,
vai deixando de ser ou fazer porque se prescindiu dessas exigências devido a
impossibilidades várias (não há dinheiro, não há vontade), mas sobretudo porque
aquilo que se espera do chamado "quarto poder" deixou de caber na
realidade em que os órgãos de comunicação são transaccionados de acordo com
interesses de poder (político, económico), e tratados como quaisquer empresas
comerciais, meros produtores e vendedores de "conteúdos", sem
qualquer consideração pela missão social que, no caso português, até está
consagrada na Constituição.
A "mãe de todas as leis" também tem
um artigo sobre a regulação da comunicação social, segundo o qual “cabe a uma
entidade administrativa independente assegurar nos meios de comunicação
social”, por exemplo, “a não concentração
da titularidade dos meios de comunicação social” ou “a independência perante o
poder político e o poder económico”, o que, manifestamente, não está a ser
garantido. Sobre isto o Tribunal Constitucional não se pronuncia, mas começa a
ser difícil esconder que a mercantilização da liberdade de expressão e
informação deixa as sociedades a contas com uma dívida permanente no balanço do
deve e haver dos valores.
Todavia, não é demais lembrar que o jornalismo
começou a morrer lá atrás, antes disso, quando deixou de se fazer a si próprio
as exigências que fazia aos outros, quando o "direito público à
informação" começou a ser a justificação para vasculhar no lixo de
políticos e “famosos”, quando a necessidade de vender apertou e o
sensacionalismo venceu. Quando, enfim, a frieza foi substituída pela
precipitação, a perseverança pelo desespero, a compreensão pelos julgamentos, a
inteligência pela voracidade e quando o direito à liberdade de expressão foi
confundido com o direito de se dizer o que se quiser e o direito à liberdade de
pensamento confundido com o direito de ter razão ou estar certo.
Por isso e por mais do que isso, a morte dos
jornais não deve servir para lamentarmos a morte dos jornais. Deve, sobretudo, servir
para meditarmos sobre o que a civilização construiu e vai sendo destruído num
processo acelerado de estupidificação. Deve servir para nos lembrarmos porque,
em 1843, se criou um jornal que ainda circula chamado The Economist: “(...) to take part in a severe contest
between intelligence, which presses forward, and an unworthy, timid ignorance
obstructing our progress”, uma bela definição de jornalismo, tanto há dois
séculos como hoje.
Tenhamos presente, ainda, que ao contrário do
que se passava há 171 anos, hoje, é o mundo da "informação" (só a
polissemia que esta palavra contraiu nos últimos anos dava para escrever
tratados) que nos obriga a “tomar parte de uma competição dura entre a
inteligência, que pressiona o avanço, e uma indigna e medrosa ignorância que
obstrui o nosso progresso”.
No final do monumental "Da Alvorada à
Decadência - De 1500 à Actualidade - 500 Anos de Vida Cultural do Ocidente",
o historiador Jacques Barzun explica como a Internet "tornou ainda mais
generalizada essa forma de existência desprovida de espírito e energia - estar
sentado a olhar para um ecrã -, agravando desse modo o isolamento do
indivíduo", que tem "todo o mundo do conhecimento à disposição"
numa Internet que fornece "erros e desinformação com a mesma
imparcialidade" com que proporciona outros dados.
Mas voltemos, de novo, “lá atrás”. Em "The
News: A User's Manual", o filósofo inglês Alain de Botton conta como o
escritor francês Gustave Falubert viveu o aparecimento em massa dos jornais de
grande-circulação, que, acreditava o autor de "Madame Bovary",
estavam a espalhar uma nova forma de estupidez - "la bêtise" -, uma ignorância
ainda pior do que aquela que substituía, porque era fomentada pelo “conhecimento”.
A imprensa, resume Alain de Botton, dera vida a criaturas sem imaginação e sem
criatividade (o tal “espírito” e a tal “energia”), mas extremamente bem
informadas. E até por estes “idiotas dos tempos modernos”, na expressão de
Alain de Botton, dobram os sinos. Ninguém escapa à morte dos jornais.
Publicado no jornal Hoje Macau em Junho de 2014
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