domingo, 9 de agosto de 2015

Por quem os sinos dobram

O despedimento colectivo no grupo que detém o Diário de Notícias e o Jornal de Notícias, entre outros órgãos de comunicação social, a que dediquei a crónica da semana passada, recuperou uma questão: a morte dos jornais. Só que a morte dos jornais não é, de facto, só a morte dos jornais. É mais do que isso.

É um lugar comum que encontramos muitas vezes: que o jornalismo é fundamental para o funcionamento de sociedades e Estados desenvolvidos, transparentes e democráticos. É verdade. Sem jornalismo, nada disso está garantido, mas com o jornalismo também nada garante que isso, assim sem mais nem menos, exista.

O jornalismo é preciso, mas também é preciso que o jornalismo seja e faça muitas coisas que, infelizmente, para desgraça de todos, vai deixando de ser ou fazer porque se prescindiu dessas exigências devido a impossibilidades várias (não há dinheiro, não há vontade), mas sobretudo porque aquilo que se espera do chamado "quarto poder" deixou de caber na realidade em que os órgãos de comunicação são transaccionados de acordo com interesses de poder (político, económico), e tratados como quaisquer empresas comerciais, meros produtores e vendedores de "conteúdos", sem qualquer consideração pela missão social que, no caso português, até está consagrada na Constituição.

A "mãe de todas as leis" também tem um artigo sobre a regulação da comunicação social, segundo o qual “cabe a uma entidade administrativa independente assegurar nos meios de comunicação social”, por exemplo,  “a não concentração da titularidade dos meios de comunicação social” ou “a independência perante o poder político e o poder económico”, o que, manifestamente, não está a ser garantido. Sobre isto o Tribunal Constitucional não se pronuncia, mas começa a ser difícil esconder que a mercantilização da liberdade de expressão e informação deixa as sociedades a contas com uma dívida permanente no balanço do deve e haver dos valores.

Todavia, não é demais lembrar que o jornalismo começou a morrer lá atrás, antes disso, quando deixou de se fazer a si próprio as exigências que fazia aos outros, quando o "direito público à informação" começou a ser a justificação para vasculhar no lixo de políticos e “famosos”, quando a necessidade de vender apertou e o sensacionalismo venceu. Quando, enfim, a frieza foi substituída pela precipitação, a perseverança pelo desespero, a compreensão pelos julgamentos, a inteligência pela voracidade e quando o direito à liberdade de expressão foi confundido com o direito de se dizer o que se quiser e o direito à liberdade de pensamento confundido com o direito de ter razão ou estar certo.

Por isso e por mais do que isso, a morte dos jornais não deve servir para lamentarmos a morte dos jornais. Deve, sobretudo, servir para meditarmos sobre o que a civilização construiu e vai sendo destruído num processo acelerado de estupidificação. Deve servir para nos lembrarmos porque, em 1843, se criou um jornal que ainda circula chamado The Economist:  “(...) to take part in a severe contest between intelligence, which presses forward, and an unworthy, timid ignorance obstructing our progress”, uma bela definição de jornalismo, tanto há dois séculos como hoje.

Tenhamos presente, ainda, que ao contrário do que se passava há 171 anos, hoje, é o mundo da "informação" (só a polissemia que esta palavra contraiu nos últimos anos dava para escrever tratados) que nos obriga a “tomar parte de uma competição dura entre a inteligência, que pressiona o avanço, e uma indigna e medrosa ignorância que obstrui o nosso progresso”.

No final do monumental "Da Alvorada à Decadência - De 1500 à Actualidade - 500 Anos de Vida Cultural do Ocidente", o historiador Jacques Barzun explica como a Internet "tornou ainda mais generalizada essa forma de existência desprovida de espírito e energia - estar sentado a olhar para um ecrã -, agravando desse modo o isolamento do indivíduo", que tem "todo o mundo do conhecimento à disposição" numa Internet que fornece "erros e desinformação com a mesma imparcialidade" com que proporciona outros dados.

Mas voltemos, de novo, “lá atrás”. Em "The News: A User's Manual", o filósofo inglês Alain de Botton conta como o escritor francês Gustave Falubert viveu o aparecimento em massa dos jornais de grande-circulação, que, acreditava o autor de "Madame Bovary", estavam a espalhar uma nova forma de estupidez - "la bêtise" -, uma ignorância ainda pior do que aquela que substituía, porque era fomentada pelo “conhecimento”. A imprensa, resume Alain de Botton, dera vida a criaturas sem imaginação e sem criatividade (o tal “espírito” e a tal “energia”), mas extremamente bem informadas. E até por estes “idiotas dos tempos modernos”, na expressão de Alain de Botton, dobram os sinos. Ninguém escapa à morte dos jornais.

Publicado no jornal Hoje Macau em Junho de 2014 

Sem comentários:

Enviar um comentário