sábado, 8 de agosto de 2015

Índia electrónica: A primeira história


Índia. A mera enunciação da palavra serve para transportar até ao país de Siddhartha o mais eremita dos eremitas que nunca ali tenha posto pé. Um nome. É o que basta para evocar o imaginário de que é feito o país dos brâmanes e das cores, dos rios sagrados, dos templos e divindades, dos muitos lugares comuns que, apesar da sua profusão, não desenvencilham a Índia da aura de mistério, um enigma que se desprende dessa vasta terra como a névoa do Ganges, eternamente pairando rente à superfície, qual extenso véu. Qual comprido sari.

O segundo país mais populoso do Mundo, nação de mais de um bilião de pessoas, é, sem surpresa, um mosaico labiríntico cujo enredo desafia a lógica linear das narrativas e da organização. A música, naturalmente, faz parte dessa tessitura. Mas, na Índia, até há relativamente pouco tempo, “a música continuava a ser uma forma tradicional de entretenimento que, raramente, era encarada como um campo de progressivo esforço artístico”. A observação é de Samrat B, músico e produtor (Audio Pervert, Teddy Boy Kill), e vem escrita em “HUB – Indian Electronica Yearbook Project”, de 2010, a primeira antologia da subcultura da música electrónica indiana. Trata-se de uma iniciativa que teve o alto patrocínio do GoetheInstitut/Max Mueller Bhavan (é assim que o instituto alemão é conhecido na Índia), uma vez mais pioneiro na diplomacia cultural, servindo de lição obrigatória para instituições com vocações e missões semelhantes.

“HUB” regista o passado e o presente da música electrónica feita na Índia, mas também a actividade (com grande peso) da diáspora indiana espalhada pelo Mundo. Música, artistas, discos, eventos, editoras, tudo está incluído neste projecto que tem por objectivo despertar a atenção para a música electrónica “made in India”, através de um inédito registo sistemático de informação que, até aqui, subsistiu dispersa e oculta sob o tal comprido sari.

Além de listas com perfis detalhados de cerca de 60 artistas (incluindo desde dados sobre discografias a contactos), “HUB” compila ainda textos que dissecam o impacto da música electrónica na Índia, em termos de definição dos “gostos” e preferências, mas também na influência dos “estilos de vida” ou nas formas de entretenimento nocturno, entre outras facetas.

Num artigo que serve de preâmbulo à antologia, Samrat B, aqui no papel de director do projecto “HUB”, narra a breve história da música electrónica indiana desde 1982 – ano em que o nosso conhecido Charanjit Singh editou o seminal “Ten Ragas to a Disco Beat” (ver “Próximo Oriente” do passado dia 20 de Maio) –, até aos dias de hoje.

“Ten Ragas to a Disco Beat” é tido como o primeiro disco de música electrónica produzido na Índia, etiqueta a que se junta outra, porventura mais significativa: ter sido o disco inaugural do Acid House, género que se tornou global apenas na segunda metade da década de 1980.

Todavia, apesar de bem-aventuradas, as experiências de Charanjit Singh com os sintetizadores TR808 e 909 (máquinas míticas da Roland) passaram largamente despercebidas na Índia, que continuou indiferente à popularidade que a música electrónica granjeava, nos anos 1980, um pouco por todo o Mundo.

Nessa altura, de acordo com Samrat B, no país, as modernas “especiarias” electrónicas eram apenas privilégio de uma elite de compositores de Bollywood, onde os estúdios eram equipados com fausto e ofereciam as infinitas possibilidades de composição que só o admirável novo mundo electrónico podia. E um privilégio de poucos permaneceram as muitas virtudes desse novo mundo, até que, um dia, no oeste indiano, começou a dar à costa uma vaga de neo-hippies. (Continua)

Publicado no jornal Hoje Macau no dia 24 de Junho de 2011


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