Índia. A mera enunciação da palavra serve para
transportar até ao país de Siddhartha o mais eremita dos eremitas que nunca ali
tenha posto pé. Um nome. É o que basta para evocar o imaginário de que é feito
o país dos brâmanes e das cores, dos rios sagrados, dos templos e divindades,
dos muitos lugares comuns que, apesar da sua profusão, não desenvencilham a
Índia da aura de mistério, um enigma que se desprende dessa vasta terra como a
névoa do Ganges, eternamente pairando rente à superfície, qual extenso véu.
Qual comprido sari.
O segundo país mais populoso do Mundo, nação
de mais de um bilião de pessoas, é, sem surpresa, um mosaico labiríntico cujo
enredo desafia a lógica linear das narrativas e da organização. A música,
naturalmente, faz parte dessa tessitura. Mas, na Índia, até há relativamente
pouco tempo, “a música continuava a ser uma forma tradicional de entretenimento
que, raramente, era encarada como um campo de progressivo esforço artístico”. A
observação é de Samrat B, músico e produtor (Audio Pervert, Teddy Boy Kill), e
vem escrita em “HUB – Indian Electronica Yearbook Project”, de 2010, a primeira
antologia da subcultura da música electrónica indiana. Trata-se de uma
iniciativa que teve o alto patrocínio do Goethe‐Institut/Max Mueller Bhavan (é assim que o instituto alemão é conhecido
na Índia), uma vez mais pioneiro na diplomacia cultural, servindo de lição
obrigatória para instituições com vocações e missões semelhantes.
“HUB” regista o passado e o presente da música
electrónica feita na Índia, mas também a actividade (com grande peso) da
diáspora indiana espalhada pelo Mundo. Música, artistas, discos, eventos,
editoras, tudo está incluído neste projecto que tem por objectivo despertar a
atenção para a música electrónica “made in India”, através de um inédito
registo sistemático de informação que, até aqui, subsistiu dispersa e oculta
sob o tal comprido sari.
Além de listas com perfis detalhados de cerca
de 60 artistas (incluindo desde dados sobre discografias a contactos), “HUB”
compila ainda textos que dissecam o impacto da música electrónica na Índia, em
termos de definição dos “gostos” e preferências, mas também na influência dos
“estilos de vida” ou nas formas de entretenimento nocturno, entre outras
facetas.
Num artigo que serve de preâmbulo à antologia,
Samrat B, aqui no papel de director do projecto “HUB”, narra a breve história
da música electrónica indiana desde 1982 – ano em que o nosso conhecido
Charanjit Singh editou o seminal “Ten Ragas to a Disco Beat” (ver “Próximo
Oriente” do passado dia 20 de Maio) –, até aos dias de hoje.
“Ten Ragas to a Disco Beat” é tido como o
primeiro disco de música electrónica produzido na Índia, etiqueta a que se
junta outra, porventura mais significativa: ter sido o disco inaugural do Acid
House, género que se tornou global apenas na segunda metade da década de 1980.
Todavia, apesar de bem-aventuradas, as
experiências de Charanjit Singh com os sintetizadores TR808 e 909 (máquinas
míticas da Roland) passaram largamente despercebidas na Índia, que continuou
indiferente à popularidade que a música electrónica granjeava, nos anos 1980,
um pouco por todo o Mundo.
Nessa altura, de acordo com Samrat B, no país,
as modernas “especiarias” electrónicas eram apenas privilégio de uma elite de
compositores de Bollywood, onde os estúdios eram equipados com fausto e
ofereciam as infinitas possibilidades de composição que só o admirável novo
mundo electrónico podia. E um privilégio de poucos permaneceram as muitas
virtudes desse novo mundo, até que, um dia, no oeste indiano, começou a dar à
costa uma vaga de neo-hippies. (Continua)
Publicado no jornal Hoje Macau no dia 24 de Junho de 2011
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