No belíssimo “The City of Your Final
Destination” (James Ivory, 2009), há uma cena de antologia entre a “severa”
Caroline, personagem interpretada pela fabulosa Laura Linney, e a “decidida”
Deirdre. A sequência é de confronto (no sentido figurado de “oposição”) e
termina com a personagem de Laura Linney em tom falsamente condescendente desde
as alturas morais de quem vive reclusa da relação com a Arte e seus valores
(Beleza, Verdade), deixando, com ensaiada displicência, a lição a uma jovem que
ainda não estará no caminho de perceber o mundo e as coisas do mundo além da
superficialidade e que tenta, em tom arrivista e vagamente petulante, impor a
sua vontade. O diálogo acontece ao som da melopeia encantatória de Francis
Poulenc (“Tres lent et calme”) e, de facto, não havia outra música que pudesse
caracterizar aquela cena feita de antagonismo, mas também de elevação – sem
altercações ou levantar de voz, apenas palavras ditas no tempo certo –,
acentuando a um mesmo tempo a intensidade e a leveza, a revolta e a melancolia,
sentimentos do tumulto interior e abafado da personagem de Linney.
Esta dialéctica interna que se passa num mesmo corpo, numa mesma entidade, conferindo múltiplas faces a uma só superfície, consoante a incidência da luz ou a ressonância, é talvez a maior proeza da música de Akira Kosemura que, à falta de Poulenc (Deus queira que não, não desfazendo o japonês), poderia ter servido de pano de fundo à inspirada (e inspiradora) cena do início deste texto.
As devidas apresentações: Akira Kosemura é um
músico e compositor japonês. Vive em Tóquio. Além da música propriamente dita,
que arranja e interpreta, Akira gere a editora Schole, criada depois da sua
primeira obra, o EP “In a Distant Forest Somewhere” (Monotonik, 2006), ter atraído
a atenção um pouco por todo o mundo.
O primeiro longa-duração, “Afterglow” (Schole,
2007) foi assinado a meias com outro autor japonês, Haruka Nakamura. Ainda em
2007, Akira fez sair o seu primeiro disco a solo, “It’s On Everything”, editado
pela australiana Someone Good.
Construído em torno do piano e de sons do
ambiente (“field recordings”), pontilhado por filigranas electrónicas, o
primeiro disco revelou um universo musical de prazeres simples e quotidianos,
uma banda-sonora para vidas diletantes. Os temas transportam-nos para um
imaginário primaveril e pastoral onde a inocência adolescente é atravessada por
uma melancolia doce e súbita, como quando nos apercebemos que as últimas luzes
do dia já definham no horizonte.
Na sua discografia (alargada entretanto para
cinco LP), Akira Kosemura foi cedendo lugar ao despojamento. Entre o primeiro
“It’s on Everything” e o mais recente “How My Heart Sings”, deste ano, Akira
libertou o espaço electro-acústico, um aparato reduzido agora a quase
inaudível. Continua apenas o piano, desta feita enlevado pelas cordas num
ambiente entre o bucolismo de Poulenc e o jazz espiritual com marca ECM. Um som
limpo, por fim, mas ainda com o mesmo apelo cinemático e sugestivo, leveza e intensidade, elegante e íntimo.
Vincando o classicismo reinante, algumas músicas têm mesmo uma aura triunfante
e remetem-nos para epifanias amorosas num jardim de solar com estátuas e um
repuxo.
Esta é música com o dom da sedução. Não se estranha,
nem entranha, à primeira. Todavia, sem o sabermos, pela calada, somos por ela
agarrados. É uma espécie de “fogo que arde sem se ver”, tal como todos os casos
sérios de amor, e que parece fazer parte de nós, não desde há muito, nem desde
há pouco, mas desde sempre. O mundo e o tempo passam por aqui. Leve, levemente,
mas passam.
Publicado no jornal Hoje Macau no dia 17 de Junho de 2011
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