sábado, 8 de agosto de 2015

Pastoral japonesa


No belíssimo “The City of Your Final Destination” (James Ivory, 2009), há uma cena de antologia entre a “severa” Caroline, personagem interpretada pela fabulosa Laura Linney, e a “decidida” Deirdre. A sequência é de confronto (no sentido figurado de “oposição”) e termina com a personagem de Laura Linney em tom falsamente condescendente desde as alturas morais de quem vive reclusa da relação com a Arte e seus valores (Beleza, Verdade), deixando, com ensaiada displicência, a lição a uma jovem que ainda não estará no caminho de perceber o mundo e as coisas do mundo além da superficialidade e que tenta, em tom arrivista e vagamente petulante, impor a sua vontade. O diálogo acontece ao som da melopeia encantatória de Francis Poulenc (“Tres lent et calme”) e, de facto, não havia outra música que pudesse caracterizar aquela cena feita de antagonismo, mas também de elevação – sem altercações ou levantar de voz, apenas palavras ditas no tempo certo –, acentuando a um mesmo tempo a intensidade e a leveza, a revolta e a melancolia, sentimentos do tumulto interior e abafado da personagem de Linney. 

Esta dialéctica interna que se passa num mesmo corpo, numa mesma entidade, conferindo múltiplas faces a uma só superfície, consoante a incidência da luz ou a ressonância, é talvez a maior proeza da música de Akira Kosemura que, à falta de Poulenc (Deus queira que não, não desfazendo o japonês), poderia ter servido de pano de fundo à inspirada (e inspiradora) cena do início deste texto.

As devidas apresentações: Akira Kosemura é um músico e compositor japonês. Vive em Tóquio. Além da música propriamente dita, que arranja e interpreta, Akira gere a editora Schole, criada depois da sua primeira obra, o EP “In a Distant Forest Somewhere” (Monotonik, 2006), ter atraído a atenção um pouco por todo o mundo.

O primeiro longa-duração, “Afterglow” (Schole, 2007) foi assinado a meias com outro autor japonês, Haruka Nakamura. Ainda em 2007, Akira fez sair o seu primeiro disco a solo, “It’s On Everything”, editado pela australiana Someone Good.

Construído em torno do piano e de sons do ambiente (“field recordings”), pontilhado por filigranas electrónicas, o primeiro disco revelou um universo musical de prazeres simples e quotidianos, uma banda-sonora para vidas diletantes. Os temas transportam-nos para um imaginário primaveril e pastoral onde a inocência adolescente é atravessada por uma melancolia doce e súbita, como quando nos apercebemos que as últimas luzes do dia já definham no horizonte.

Na sua discografia (alargada entretanto para cinco LP), Akira Kosemura foi cedendo lugar ao despojamento. Entre o primeiro “It’s on Everything” e o mais recente “How My Heart Sings”, deste ano, Akira libertou o espaço electro-acústico, um aparato reduzido agora a quase inaudível. Continua apenas o piano, desta feita enlevado pelas cordas num ambiente entre o bucolismo de Poulenc e o jazz espiritual com marca ECM. Um som limpo, por fim, mas ainda com o mesmo apelo cinemático e sugestivo,  leveza e intensidade, elegante e íntimo. Vincando o classicismo reinante, algumas músicas têm mesmo uma aura triunfante e remetem-nos para epifanias amorosas num jardim de solar com estátuas e um repuxo.

Esta é música com o dom da sedução. Não se estranha, nem entranha, à primeira. Todavia, sem o sabermos, pela calada, somos por ela agarrados. É uma espécie de “fogo que arde sem se ver”, tal como todos os casos sérios de amor, e que parece fazer parte de nós, não desde há muito, nem desde há pouco, mas desde sempre. O mundo e o tempo passam por aqui. Leve, levemente, mas passam.

Publicado no jornal Hoje Macau no dia 17 de Junho de 2011


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