domingo, 9 de agosto de 2015

Mais uma crónica de uma morte anunciada

"Controlinveste avança para reestruturação", dizia o título do Diário de Notícias. No antetítulo, a informação que interessava: "160 trabalhadores dispensados".  Depois, as palavras do costume: "O Conselho de Administração da Controlinveste justifica a decisão com 'a evolução negativa do mercado dos media (...) e a acentuada quebra de receitas do sector', o que impôs à empresa 'uma decisão estratégica de redução de custos para garantir a sustentabilidade do negócio'". E concluía: "A Controlinveste apela agora ao apoio de todos os trabalhadores prometendo 'para breve (...) algumas novidades' que irão 'levar [a empresa] a uma nova era na imprensa escrita, no digital ou na rádio', iniciando 'um novo ciclo de crescimento sustentado'".

A Controlinveste Conteúdos é, como se diz, uma "holding". Detém seis jornais (entre os quais o Diário de Notícias, o Jornal de Notícias e O Jogo), seis suplementos, duas revistas, uma rádio (TSF), uma rede de canais de televisão (SporTV), uma agência de comunicação, duas empresas de direitos televisivos, duas distribuidoras de imprensa, duas gráficas e uma agência de viagens. Não tem, notava o jornal Público, uma comissão de trabalhadores.

Nos últimos cinco anos, o despedimento colectivo conhecido no passado dia 11 foi o terceiro. Ao todo, de 2009 para cá neste grupo de media foram atingidas pelos cortes mais de 300 pessoas, mas a "austeridade", ou as "reestruturações", na linguagem obscenamente useira do momento, parecem ter-se aprofundado nos últimos meses. Segundo o jornal Expresso, desde que a nova administração tomou posse, em Dezembro de 2013, houve cortes de 5,5 milhões de euros.

A decisão de que é preciso despedir mais 160 pessoas, incluindo 64 jornalistas, para "levar [a empresa] a uma nova era na imprensa escrita, no digital ou na rádio, iniciando um novo ciclo de crescimento sustentado" é de uma administração liderada por Daniel Proença de Carvalho, que quase dispensa apresentações. Todavia, não faz mal relembrar: é um dos "advogados do regime", próximo do PSD (foi ministro da Comunicação Social do governo de Mota Pinto, um dos fundadores do Partido Popular Democrático, o "PPD" que Santana Lopes traz sempre na boca), mas também causídico para representar o ex-primeiro-ministro socialista José Sócrates.

A entrada de Proença de Carvalho na Controlinveste coincidiu com a chegada à empresa do angolano António Mosquito, próximo do presidente José Eduardo dos Santos, e de Luís Montez, genro do presidente português, Cavaco Silva.

Antes de presidir a esta "holding", Proença de Carvalho já era o responsável com mais cargos entre os administradores não executivos das companhias do PSI-20, e também o mais bem pago. De acordo com o que informava o Diário de Notícias, em 2010, o advogado era presidente do conselho de administração da Zon, membro da comissão de remunerações do Banco Espírito Santo, vice-presidente da mesa da assembleia geral da Caixa Geral de Depósitos e presidente da mesa na Galp Energia, apenas os cargos em empresas cotadas, já que Proença de Carvalho desempenhava funções semelhantes em mais de 30 empresas. Considerando apenas as quatro empresas cotadas (só é possível saber a remuneração em empresas cotadas em bolsa), em 2009, o advogado recebeu perto de 253 mil euros por ter participado em 16 reuniões, o que dá uma média de 15,8 mil euros por reunião, quase três vezes mais do que o segundo mais bem pago nesta lista, outro advogado, João Vieira Castro, e do que o medalha de bronze, o actual ministro da Defesa do governo português, outro advogado, José Pedro Aguiar-Branco.

No dia seguinte ao mais recente despedimento colectivo, jornalistas de vários órgãos de comunicação reuniram-se em frente ao centenário edifício do Diário de Notícias, no Marquês de Pombal, numa manifestação de solidariedade. O Expresso, na tarde desse dia, "véspera dos festejos de Santo António e das marchas populares", de "ruas calmas e trânsito na Avenida da Liberdade condicionado", contava que houve "abraços, lágrimas e palavras de conforto contra os despedimentos".

As fotografias daquele momento confundem-se facilmente com as do funeral de uma figura popular. Quase não há roupas de cores escuras, mas as expressões são de consternação. E surpresa. Mas estas imagens não deviam surpreender. São, infelizmente, já parte da memória colectiva de um país em crise. Repetem-se com uma frequência que, em vez de diminuir, aumenta. Das fábricas às redacções, as filas de dispensáveis, excedentários, de simplesmente "inúteis" vão engrossando.

Pela boca dos próprios jornalistas ficámos a saber os motivos das rescisões. Houve quem, como João Paulo Baltazar, da TSF (um dos dois jornalistas mais antigos da estação, que ajudou a fundar, e multipremiado), tivesse sido despedido porque era o que ganhava mais, mas o salário mais baixo também foi justificação apresentada para terminar o contrato com um repórter fotográfico da Global Imagens. Ser um dos melhores e, ainda assim, suponho, não ganhar em três ou quatro meses, ou mais, o que o patrão ganha numa reunião, não basta para garantir emprego, tal como não basta ser mal pago e fazer o que for preciso.

Assim chegámos ao dia 11 de Junho de 2014, mais um dia em que centenas de pessoas foram despedidas. E o país, o tal do 10 de Junho que já serviu para celebrar a "raça" e agora engrandece o que ainda se pode - um país à mingua e uma memória polida conforme o jeito, tal como os comendadores, e em que só os discursos vazios e falsamente esperançosos e os patrioteiros são os de sempre porque ninguém, verdadeiramente, deles quer saber -, o país foi sendo reduzido aos "patos-bravos feitos empresários de sucesso, comendadores da mula russa e gangsters de taco de golfe", na síntese do jornalista Miguel Carvalho; a isso e aos "facilitadores" de negócios e carreiras políticas, aos videirinhos que passam o tempo nos corredores, ora dando palmadas ora dando facadas, e todos passando bem sem jornalistas, sobretudo aqueles que, quando se despedem 160 pessoas numa "reestruturação" para iniciar "um novo ciclo de crescimento sustentado", sabem que é preciso resgatar valores que de tão essenciais se tornaram invisíveis: dignidade e liberdade, por exemplo. Ou isso ou a indiferença e mais crónicas de mortes anunciadas.

Publicado no jornal Hoje Macau em Junho de 2014 

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