Era difícil tramar um enredo que expusesse de forma mais
cristalina a disfuncionalidade daquilo que Macau tem por “regime”. Os
acontecimentos dos últimos dias estão aí para nos mostrar que nem uma
oligarquia de patriotas pode, sozinha, dar conta do recado. Aparentemente, à
“elite” que governa e legisla falta discernimento e sentido de justiça. Não são
coisas poucas. Mas, por uma vez, mesmo sem consulta pública, a população
pronunciou-se e alguma coisa aconteceu.
“Acordaram”, leu-se e ouviu-se muito a propósito dos
protestos que, em dois dias, juntaram pessoas em números há muito não vistos em
Macau.
Depois de durante anos a fio terem assistido impávidos a
todo o tipo de ataques a uma cidade que de histórica passou a parque temático,
com indústrias criativas em vez de cultura, comércios em vez de escolas e
empresas em vez de cuidados de saúde, onde a poluição é subsidiada com
dinheiros públicos, a especulação imobiliária encorajada pelo governo, a
inflação uma política e a qualidade de vida um conceito cada vez mais estranho
e difícil de perceber, depois de tudo isto e muito mais que todos os dias e de
todas as maneiras continua a prejudicar a vida os residentes de Macau, eles
acordaram.
Este verdadeiro feito, o despertar mágico de um sono profundo,
comatoso, coube a uma proposta de lei que o South China Morning Post
classificou como “de ficar de queixo caído”. A poucos meses de terminar o
mandato, resumiu o jornal de Hong Kong, “o governo de Macau apressou-se a fazer
passar uma lei que oferece lucrativos benefícios aos que deixarem os cargos em
Dezembro”, além de “dar imunidade criminal ao Chefe do Executivo”. A proposta,
anunciava o jornal num editorial do domingo em que 20 mil pessoas terão saído à
rua em protesto, “estabelece um mau exemplo”.
Depois de uma passividade pacientemente construída entre
a resignação e a sabedoria de quem percebe a inutilidade do esforço para mudar
o impossível, no tal domingo, milhares de pessoas, jovens na maioria,
escolheram passar uma tarde de sol e de um calor de ananases a gritar palavras
de ordem, a empunhar cartazes e a fazer uma exigência ao Governo: retirem a
proposta de lei. Sem um único incidente registado, foram em cortejo da praça do
Tap Seac ao Lago Nam Van, tendo ainda muitos rumado ao Jardim da Penha, mesmo
ao lado das casas dos que beneficiariam se a lei tivesse sido aprovada. Não
foi. Ainda.
Na noite daquele domingo, três deputados, membros do
Conselho Executivo, órgão presidido pelo Chefe do Executivo, anunciaram o
pedido de adiamento da votação da proposta da polémica. Na manhã seguinte, foi
a vez de o Governo dizer que apoiava a “iniciativa”. À tarde era o próprio
Chefe do Executivo que fazia o mesmo pedido ao presidente da Assembleia
Legislativa. Em três andamentos, os titulares dos principais cargos pelavam-se
por conseguir o mais importante: salvar a face.
No plenário em que se discutiu o adiamento da votação do
regime de garantias, enquanto a maioria dos deputados argumentava coisas como a
necessidade de “atrair talentos para o Governo” ou “acautelar o futuro dos que
entregaram anos da sua vida ao serviço público”, à porta da Assembleia
juntavam-se, uma vez mais, milhares de pessoas para relembrar a exigência:
retirem a proposta de lei.
Foi isso que propôs aos colegas o deputado Ng Kuok Cheong,
mas apenas quatro votaram a favor.
E quando parecia que já não havia outra face para dar e salvar,
quando já tudo se tinha mudado para que tudo ficasse na mesma, eis que o Chefe
do Executivo aparece a pedir, em nome da “harmonia social”, que a proposta de
lei intitulada “Regime de garantia dos titulares do cargo de Chefe do Executivo
e dos principais cargos a aguardar posse, em efectividade e após cessação de
funções” fosse retirada, acrescentando que uma outra deve ser aprovada antes do
final do mandato, em Dezembro.
Nesta verdadeira alhada, há ainda dois momentos que devem
ficar registados como espécies de prólogo e epílogo.
No sábado anterior à grande manifestação, o
vice-presidente da Assembleia Legislativa insultou e usou gestos ameaçadores em
frente às câmaras de televisão contra um jornalista que teve o atrevimento de
perguntar se havia pressa na aprovação do regime de garantias e se esse
procedimento não estaria a ser levado adiante em sacrifício da opinião pública.
Passou-se mais de uma semana e não houve um pedido de desculpa por parte de Lam
Heong Sang nem se ouviu da parte da Assembleia ou da maioria dos deputados uma
condenação. Não. O que ouvimos de uma das vozes daquele hemiciclo, já no
rescaldo da intervenção final do Chefe do Executivo, foi a confissão de que
eles, os deputados, não deram a devida atenção ao diploma da controvérsia, sem
que isso tivesse servido, todavia, para impedir que estivesse agendada a
segunda e última votação da proposta de lei.
Mas esta triste peça não ficaria completa sem o que os
ingleses chamam de “comic relief”, ou seja, o elemento humorístico que alivia a
carga dramática e a tensão. Esse papel continua a ser desempenhado com brio
pela Associação dos Conterrâneos de Jiangmen, que tem como vice-presidente o
deputado Mak Soi Kun, líder da segunda lista mais votada nas últimas eleições
para a Assembleia Legislativa.
No tal domingo da grande manifestação, a prestável colectividade decidiu arregimentar uns velhinhos para marcharem a favor do regime de garantias, mas como uma reportagem demonstrou, entre os supostos fervorosos adeptos dos subsídios havia quem não concordasse com a ideia e até quem não fizesse ideia nenhuma do que se estava a passar. Não eram os únicos. Ficámos todos mais esclarecidos.
Publicado no jornal Hoje Macau em Junho de 2014
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