domingo, 9 de agosto de 2015

Teatro do absurdo

Era difícil tramar um enredo que expusesse de forma mais cristalina a disfuncionalidade daquilo que Macau tem por “regime”. Os acontecimentos dos últimos dias estão aí para nos mostrar que nem uma oligarquia de patriotas pode, sozinha, dar conta do recado. Aparentemente, à “elite” que governa e legisla falta discernimento e sentido de justiça. Não são coisas poucas. Mas, por uma vez, mesmo sem consulta pública, a população pronunciou-se e alguma coisa aconteceu.

“Acordaram”, leu-se e ouviu-se muito a propósito dos protestos que, em dois dias, juntaram pessoas em números há muito não vistos em Macau.

Depois de durante anos a fio terem assistido impávidos a todo o tipo de ataques a uma cidade que de histórica passou a parque temático, com indústrias criativas em vez de cultura, comércios em vez de escolas e empresas em vez de cuidados de saúde, onde a poluição é subsidiada com dinheiros públicos, a especulação imobiliária encorajada pelo governo, a inflação uma política e a qualidade de vida um conceito cada vez mais estranho e difícil de perceber, depois de tudo isto e muito mais que todos os dias e de todas as maneiras continua a prejudicar a vida os residentes de Macau, eles acordaram.

Este verdadeiro feito, o despertar mágico de um sono profundo, comatoso, coube a uma proposta de lei que o South China Morning Post classificou como “de ficar de queixo caído”. A poucos meses de terminar o mandato, resumiu o jornal de Hong Kong, “o governo de Macau apressou-se a fazer passar uma lei que oferece lucrativos benefícios aos que deixarem os cargos em Dezembro”, além de “dar imunidade criminal ao Chefe do Executivo”. A proposta, anunciava o jornal num editorial do domingo em que 20 mil pessoas terão saído à rua em protesto, “estabelece um mau exemplo”.

Depois de uma passividade pacientemente construída entre a resignação e a sabedoria de quem percebe a inutilidade do esforço para mudar o impossível, no tal domingo, milhares de pessoas, jovens na maioria, escolheram passar uma tarde de sol e de um calor de ananases a gritar palavras de ordem, a empunhar cartazes e a fazer uma exigência ao Governo: retirem a proposta de lei. Sem um único incidente registado, foram em cortejo da praça do Tap Seac ao Lago Nam Van, tendo ainda muitos rumado ao Jardim da Penha, mesmo ao lado das casas dos que beneficiariam se a lei tivesse sido aprovada. Não foi. Ainda.

Na noite daquele domingo, três deputados, membros do Conselho Executivo, órgão presidido pelo Chefe do Executivo, anunciaram o pedido de adiamento da votação da proposta da polémica. Na manhã seguinte, foi a vez de o Governo dizer que apoiava a “iniciativa”. À tarde era o próprio Chefe do Executivo que fazia o mesmo pedido ao presidente da Assembleia Legislativa. Em três andamentos, os titulares dos principais cargos pelavam-se por conseguir o mais importante: salvar a face.

No plenário em que se discutiu o adiamento da votação do regime de garantias, enquanto a maioria dos deputados argumentava coisas como a necessidade de “atrair talentos para o Governo” ou “acautelar o futuro dos que entregaram anos da sua vida ao serviço público”, à porta da Assembleia juntavam-se, uma vez mais, milhares de pessoas para relembrar a exigência: retirem a proposta de lei. 

Foi isso que propôs aos colegas o deputado Ng Kuok Cheong, mas apenas quatro votaram a favor.
E quando parecia que já não havia outra face para dar e salvar, quando já tudo se tinha mudado para que tudo ficasse na mesma, eis que o Chefe do Executivo aparece a pedir, em nome da “harmonia social”, que a proposta de lei intitulada “Regime de garantia dos titulares do cargo de Chefe do Executivo e dos principais cargos a aguardar posse, em efectividade e após cessação de funções” fosse retirada, acrescentando que uma outra deve ser aprovada antes do final do mandato, em Dezembro.

Nesta verdadeira alhada, há ainda dois momentos que devem ficar registados como espécies de prólogo e epílogo. 

No sábado anterior à grande manifestação, o vice-presidente da Assembleia Legislativa insultou e usou gestos ameaçadores em frente às câmaras de televisão contra um jornalista que teve o atrevimento de perguntar se havia pressa na aprovação do regime de garantias e se esse procedimento não estaria a ser levado adiante em sacrifício da opinião pública. Passou-se mais de uma semana e não houve um pedido de desculpa por parte de Lam Heong Sang nem se ouviu da parte da Assembleia ou da maioria dos deputados uma condenação. Não. O que ouvimos de uma das vozes daquele hemiciclo, já no rescaldo da intervenção final do Chefe do Executivo, foi a confissão de que eles, os deputados, não deram a devida atenção ao diploma da controvérsia, sem que isso tivesse servido, todavia, para impedir que estivesse agendada a segunda e última votação da proposta de lei.


Mas esta triste peça não ficaria completa sem o que os ingleses chamam de “comic relief”, ou seja, o elemento humorístico que alivia a carga dramática e a tensão. Esse papel continua a ser desempenhado com brio pela Associação dos Conterrâneos de Jiangmen, que tem como vice-presidente o deputado Mak Soi Kun, líder da segunda lista mais votada nas últimas eleições para a Assembleia Legislativa. 

No tal domingo da grande manifestação, a prestável colectividade decidiu arregimentar uns velhinhos para marcharem a favor do regime de garantias, mas como uma reportagem demonstrou, entre os supostos fervorosos adeptos dos subsídios havia quem não concordasse com a ideia e até quem não fizesse ideia nenhuma do que se estava a passar. Não eram os únicos. Ficámos todos mais esclarecidos.

Publicado no jornal Hoje Macau em Junho de 2014

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