sábado, 8 de agosto de 2015

Memórias de fazer e desfazer



“Acha que a sua memória é boa? Recorda-se de muitos detalhes? Qual é a sua lembrança mais antiga?” Estas perguntas são as três primeiras de cinquenta que fazem parte de um questionário distribuído um pouco por toda a China, mas sobretudo em Pequim, entre Dezembro do ano passado e o último mês de Fevereiro. Não se trata de um estudo académico, ou sequer de uma pesquisa científica patrocinada pelo governo central, nem muito menos de uma espécie de censos de uma qualquer brigada de fiscais da recordação ou de cobradores de lembranças. Não. Trata-se do projecto “The Execution of Precious Memories”.

A convite do Goethe-Institute China, Blixa Bargeld (fundador dos Einstürzende Neubauten e ex-guitarrista dos Bad Seeds, a banda de Nick Cave) leva agora à capital chinesa um projecto que começou em Berlim, em 1994, e que passou por cidades como Tóquio, Buenos Aires, Estocolmo, Yaoundé, Londres, Nova Déli ou São Francisco. Em todos os lugares, sempre os mesmos métodos e objectivos: primeiro, são distribuídos, por vários meios, questionários na língua local, sendo depois devolvidos com o máximo de informação possível – anonimato garantido –, sendo que os dados serão processados por Blixa Bargeld, o principal responsável por um processo de “transformação poética” que , na fase de apresentação ao público, conta com a cumplicidade de artistas locais, sobretudo músicos. Em Pequim, estão agendados dois concertos relativos a este projecto, hoje, dia 15, e amanhã, no 9 Theater.

Nesta edição chinesa de “The Execution of Precious Memories”, Blixa Bargeld (residente de Pequim durante sete anos) vai ter como matéria prima informação relativa às memórias de cerca de 200 chineses, que serão representadas num espectáculo que combina música e performance.
Conforme se explica na página pessoal de Blixa, “The Execution of Precious Memories” parte da noção de que “a memória pinta com um pincel dourado”, provérbio chinês que, desde o início, serve de mote ao projecto.

Ou seja, existe a premissa teórica de que as memórias, guardadas por todos como “preciosas”, podem ser ficcionadas e não são apenas “o resultado imparcial da gravação de percepções sensoriais”.
Na verdade, explica-se, “por si só, o registo das impressões sensoriais é já uma falsificação da realidade, dependendo dos interesses e preferências específicos de cada indivíduo”. Mais, “processar a percepção da memória de cada pessoa apenas aumenta a probabilidade de que as recordações sejam objecto de ficção”. “Como diz o provérbio chinês, o que temos percepcionado torna-se ficcionado, sofre um processo de embelezamento, e só então as memórias passam a existir e a ser preciosas”.

Dos espectáculos que já se realizaram e dos quais se guardaram registos, “The Execution of Precious Memories” oferece uma síntese intensa das expressões que não são estranhas a quem acompanha com maior ou menor afinco o trabalho de Blixa Bargeld: poesia, gritos, silêncios, teatro, música e dança, tudo fazendo parte da trama em que através do que os outros pensam que pensam pensamos o que pensamos – uma espécie de mirada num espelho embaciado e distorcido no qual procuramos o reflexo da transparência subliminar, sabendo de antemão que o projecto raia o impossível. Mas, mesmo assim, não conseguimos desviar o olhar. Assim seja.


Publicado no jornal Hoje Macau no dia 15 de Março de 2013 

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