sábado, 8 de agosto de 2015

Mito de tudo e nada


Na mitologia chinesa, Pan Gu (ou Pangu, ou 盤古) é o homem primitivo, o primeiro, nascido do ovo cósmico. Na história contada pelos monges taoistas, ao partir-se em dois, o ovo que condensou o universo deu origem a tudo o que existe, tendo a parte de cima sido transformada no céu e a parte de baixo na terra. Conforme Pan Gu foi crescendo, céu e terra foram ficando cada vez mais separados. 

Ao fim de 18 mil anos, o homem-deus morreu e, tal como aconteceu com o ovo cósmico, também as partes do seu corpo se transformaram em diferentes elementos da terra: os olhos tornaram-se no sol e na lua, o sangue nos rios e nos mares, o cabelo nas florestas, o suor nas chuvas, o bafo nos ventos, a voz na tempestade e, finalmente, as pulgas que carregava deram origem à humanidade.

O mito criacionista que faz de nós descendentes de insectos que se alimentam do sangue do homem e de outros animais serve de inspiração à estreia, em disco, da dupla formada pelo singapurense Leslie Low (The Observatory, Arcn Temple) e pelo norueguês Lasse Marhaug (nome de proa da cena “noise” norueguesa, colaborador de Merzbow e Kevin Drumm, entre outros). Pan Gu é precisamente o nome que a dupla escolheu para assinar o disco “Primeval Man Born of the Cosmic Egg”, editado este ano pela Utech, do Wisconsin, que assim vai dando continuidade à ligação ao Extremo Oriente (uma das mais recentes edições é “Ephemeral as Petals”, de Keiko Higuchi, e o excelente “Emanations of a New World”, dos Arcn Temple, saiu com o selo Utech, em  2010).

A acreditar na informação que a editora norte-americana fornece sobre “Primeval Man Born of the Cosmic Egg”, o álbum resulta de uma sessão de improvisos, sem qualquer ideia pré-definida, no estúdio de Marhaug, sendo que ambos tinham tocado juntos apenas uma vez durante um concerto, em Singapura, onde terá ficado explícito que as sonoridades de cada um complementar-se-iam sem problemas.

Com a excepção de certos momentos em que o “noise” do norueguês se sobrepõe até ao pensamento de quem escuta o disco, é justo dizer que, na maior parte dos temas, o “ruído” industrial de Marhaug e o “ambient” gótico de Low vão sendo explorados num atitude de “viver o momento”, numa lógica não invasiva do espaço do outro. Há uma sensação de que o som está a ser construído, esculpido, com alguma cautela, mas tudo parece fluir e, por vezes, não nos lembramos que se tratam de improvisos de dois músicos que mal se conhecem.

Mais interiorizado, no entanto, aparenta estar o mito de Pan Gu, reduzido à sua essência: morte e vida, destruição e renascimento, pólos extremos separados mas tocados pelo mesmo ser, ideias contrastantes coexistindo e ganhando formas através dos mesmos sentidos – a electrónica abrasiva de Lasse Marhaug, por vezes no limite do suportável, fria, e a música envolvente, profunda, tridimensional de Leslie Low, amparando as agruras da criação.

O melhor exemplo das dicotomias que entrelaçam as unidades em jogo talvez seja “Elixir of Death”, o tema mais longo (09:43), marcado pela guitarra sombria de Low, que se estende sob uma electrónica desfeita em resquícios tremeluzentes do fogo de artifício, cujo silvar confere à música um inusitado sabor oriental e, já agora, festivo – o feitiço da morte, afinal, deu-nos a vida. E a revisitação de um mito antigo, das suas histórias, talvez seja o maior mérito deste disco, que não destrói um mito, nem o faz renascer, antes o transforma, do mesmo modo que ele possibilitou, ou inspirou, a transformação de ideias em sons. Nada se perde. Nada se cria.

“Primeval Man Born of the Cosmic Egg”
Utech 2013

Pan Gu

Publicado no jornal Hoje Macau no dia 14 de Junho de 2013

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