Na mitologia chinesa, Pan Gu (ou Pangu, ou 盤古) é o homem primitivo, o primeiro, nascido do ovo cósmico. Na história
contada pelos monges taoistas, ao partir-se em dois, o ovo que condensou o
universo deu origem a tudo o que existe, tendo a parte de cima sido
transformada no céu e a parte de baixo na terra. Conforme Pan Gu foi crescendo,
céu e terra foram ficando cada vez mais separados.
Ao fim de 18 mil anos, o
homem-deus morreu e, tal como aconteceu com o ovo cósmico, também as partes do
seu corpo se transformaram em diferentes elementos da terra: os olhos
tornaram-se no sol e na lua, o sangue nos rios e nos mares, o cabelo nas
florestas, o suor nas chuvas, o bafo nos ventos, a voz na tempestade e,
finalmente, as pulgas que carregava deram origem à humanidade.
O mito criacionista que faz de nós
descendentes de insectos que se alimentam do sangue do homem e de outros
animais serve de inspiração à estreia, em disco, da dupla formada pelo
singapurense Leslie Low (The Observatory, Arcn Temple) e pelo norueguês Lasse
Marhaug (nome de proa da cena “noise” norueguesa, colaborador de Merzbow e Kevin
Drumm, entre outros). Pan Gu é precisamente o nome que a dupla escolheu para
assinar o disco “Primeval Man Born of the Cosmic Egg”, editado este ano pela
Utech, do Wisconsin, que assim vai dando continuidade à ligação ao Extremo
Oriente (uma das mais recentes edições é “Ephemeral as Petals”, de Keiko
Higuchi, e o excelente “Emanations of a New World”, dos Arcn Temple, saiu com o
selo Utech, em 2010).
A acreditar na informação que a editora
norte-americana fornece sobre “Primeval Man Born of the Cosmic Egg”, o álbum
resulta de uma sessão de improvisos, sem qualquer ideia pré-definida, no
estúdio de Marhaug, sendo que ambos tinham tocado juntos apenas uma vez durante
um concerto, em Singapura, onde terá ficado explícito que as sonoridades de
cada um complementar-se-iam sem problemas.
Com a excepção de certos momentos em que o
“noise” do norueguês se sobrepõe até ao pensamento de quem escuta o disco, é
justo dizer que, na maior parte dos temas, o “ruído” industrial de Marhaug e o
“ambient” gótico de Low vão sendo explorados num atitude de “viver o momento”,
numa lógica não invasiva do espaço do outro. Há uma sensação de que o som está
a ser construído, esculpido, com alguma cautela, mas tudo parece fluir e, por
vezes, não nos lembramos que se tratam de improvisos de dois músicos que mal se
conhecem.
Mais interiorizado, no entanto, aparenta estar
o mito de Pan Gu, reduzido à sua essência: morte e vida, destruição e
renascimento, pólos extremos separados mas tocados pelo mesmo ser, ideias
contrastantes coexistindo e ganhando formas através dos mesmos sentidos – a
electrónica abrasiva de Lasse Marhaug, por vezes no limite do suportável, fria,
e a música envolvente, profunda, tridimensional de Leslie Low, amparando as
agruras da criação.
O melhor exemplo das dicotomias que entrelaçam
as unidades em jogo talvez seja “Elixir of Death”, o tema mais longo (09:43),
marcado pela guitarra sombria de Low, que se estende sob uma electrónica
desfeita em resquícios tremeluzentes do fogo de artifício, cujo silvar confere
à música um inusitado sabor oriental e, já agora, festivo – o feitiço da morte,
afinal, deu-nos a vida. E a revisitação de um mito antigo, das suas histórias,
talvez seja o maior mérito deste disco, que não destrói um mito, nem o faz
renascer, antes o transforma, do mesmo modo que ele possibilitou, ou inspirou,
a transformação de ideias em sons. Nada se perde. Nada se cria.
“Primeval
Man Born of the Cosmic Egg”
Utech
2013
Pan Gu
Publicado no jornal Hoje Macau no dia 14 de Junho de 2013
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