No seu último discurso como secretário-geral
do Partido Comunista Chinês, na abertura do 18º Congresso, realizado em
Novembro, Hu Jintao disse a certa altura que a “cultura é a alma de uma nação”.
Tal como inúmeras outras frases ditas ao longo daqueles 100 minutos, esta em
particular também primou por querer dizer tudo e, ao mesmo tempo, nada. No
entanto, face à impossibilidade de interpelar directamente o líder chinês, a
ambiguidade e amplitude expressiva das suas palavras – objecto de um esmiuçar
atento em todo o mundo – conferem à linguagem usada uma aura de gravidade
invulgar, ainda que só percebamos verdadeiramente a sua intenção uns tempos
mais tarde, quando a realidade traduzir o discurso na acção. Foi isso que
aconteceu agora quando o Governo Central anunciou o plano de, ao longo dos
próximos dez anos, investir 14 mil milhões de renminbis na construção do “Vale
da Música”, numa área rural próxima de Pequim.
De acordo com o jornal The Guardian, está previsto
nascer no vale de Pinggu um complexo de estúdios de gravação, fábricas de
instrumentos, escolas de música, hotéis de cinco estrelas e uma sala de
espectáculos com a forma de uma flor de pêssego (um dos símbolos de Pinggu, que
já tem tradição também no fabrico de violinos).
Na China, a aposta do Estado nas artes e na
cultura não é novidade. Desde 2003, a produção da indústria do cinema, por
exemplo, quadruplicou. Contudo, a indústria da música tem tido sorte diferente,
o que os especialistas explicam, em parte, devido à pirataria – a Federação
Internacional da Indústria Fonográfica afirma que a taxa de pirataria na China
é de “virtualmente 100 por cento” – e ao próprio controlo governamental
(leia-se “censura”).
As questões económicas que derivam da elevada
incidência da pirataria serão determinantes, certamente, para justificar que a
indústria musical seja, ainda, incipiente, mas a interferência estatal através
da regulação excessiva dos conteúdos aprovados para as televisões, rádios e
Internet são entendidos como a origem dos maiores problemas.
Mas o dinheiro, que poderia trazer liberdade
aos artistas, caso vissem a sua cor, também tem limitado a criatividade.
Scarlett Li, fundadora de uma empresa que
organiza festivais de música, disse ao jornal inglês que, em vez de investir em
talento, os governos locais têm seguido uma política de investimento dos apoios
estatais em infra-estruturas – projectos (normalmente megalómanos) de edifícios,
sem que os subsídios cheguem directamente aos artistas.
Do outro lado da questão, claro, estão os
músicos (cada vez mais, aparentemente), que olham com toda a desconfiança para
qualquer iniciativa do Governo Central no âmbito das artes e da cultura. São os
artistas que têm conseguido viver do seu ofício, sem, todavia, almejarem
grandes voos pelos passeios da fama. A banda de Pequim P.K.14 é um desses
exemplos.
Ao Guardian, o vocalista Yan Haisong
confessava que ninguém do seu círculo de amigos e colegas está minimamente
interessado em projectos como o “Vale da Música”. Por quê? “Misturar música e
política é estranho, porque a música que daí resultar não vai, simplesmente,
ser de qualidade. Se realmente querem melhorar a cultura, têm de abrir-se um
pouco mais”.
Dir-se-ia que até nem é preciso abrir
demasiado os horizontes. Bastaria, por exemplo, olhar para o lado, para a
vizinha Coreia do Sul, afinal o melhor exemplo (porque actual) de uma indústria
musical planificada e pujante. É pedir muito?
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