Que a cantiga é uma arma, já se sabia. Que
essa arma não tem que ser brandida apenas por hirsutos homens de bigode
farfalhudo e soar (mal) como “A Internacional” cantada às criancinhas, dava
para desconfiar; mas, podem as criaturas de arma em riste comportarem-se de
forma adorável, cândida e gentil? Com certeza.
2001, Hong Kong Shue Yan University. Num
clássico “boy meets girl”, o curso de Jornalismo e Comunicação junta Ah P (Lam
Pang) e Nicole Au Kin-ying. Amor pela música à primeira audição. Dois anos
depois, os My Little Airport dão o primeiro concerto, transformando-se na
coqueluche “indie pop”do território. A história conta-se em traços simples,
como o bom jornalismo ensina e como a música dos My Little Airport continua a
ser, ainda hoje, dez anos depois do duo ter nascido.
No último mês de Agosto, Ah P e Nicole lançaram o sexto álbum da sua
discografia, o quinto de originais (se não contarmos a compilação “Zoo is Sad,
People Are Cruel”, editada pela espanhola Elefant Records).
“Hong Kong is One Big Shopping Mall” tem tudo
o que os anteriores discos dos My Little Airport têm. Estão lá as letras em
chinês, inglês, “chinglish” e francês, o estilo confessional e vagamente
entediado de quem lê um diário que não é lá muito excitante, o “ensemble”
minimalista regido pelo órgão Casio que ora desfalece sem bateria, ora irrompe
vitaminado, as melodias pegajosas, a pose de “dandy” que se enganou no
‘casting’ e no tempo e aparece num filme francês a preto e branco, a poesia
‘naïf’, a ironia, o humor “deadpan”, a melancolia, a ambiguidade e a insuspeita
consciência política mordaz que não pressentíamos possível ser trauteada no
meio de “la la las”.
A brincar dizem-se coisas sérias e os My
Little Airport até brincam com coisas sérias, revelando-nos que a inocência é a
arma mais perigosa, exactamente porque torna as verdades mais cruas e, por
isso, mais cruéis. O que Ah P e Nicole estamparam na capa do último álbum sob a
forma de título, sem mais explicações, é uma espécie de retorno aos tempos
áureos dos “slogans” que o Maio de 68 espalhou nas ruas de Paris.
O pico da irreverência que tornou os
delicodoces My Little Airport nos mais temerários “punks” da Região
Administrativa Especial de Hong Kong é, muito provavelmente, o álbum “Poetics –
Something Between Montparnasse and Mongkok”, de 2009.
Uma das 16 canções tem o sugestivo título
“Divvying up Stephen Lam's $300000 Salary”, no qual se propõe dividir o
principesco ordenado do então secretário para os Assuntos Constitucionais e
actual secretário-chefe do governo de Hong Kong.
Mas o ensejo de deitar mão comunista a 300 mil
dólares é coisa de meninos nada subversivos quando comparado com a cantiga que
fecha “Poetics ...”: “Donald Tsang, please die”. Foi assim, apesar de tudo, com
boa educação (atente-se na polidez da interjeição “please”), que os My Little
Airport decidiram juntar a voz ao protesto dos que se sentiram revoltados pelo
facto de o chefe do executivo de Hong Kong ter desvalorizado a necessidade de
continuar a assinalar o massacre de Tiananmen, lembrando que “aconteceu há
muitos anos” e que o desenvolvimento da China significou “prosperidade
económica” para a antiga colónia britânica.
Hoje, encontrar consciência política e canções
de protesto nas centenas ou milhares de discos que, diariamente, inundam o
mercado é tarefa difícil. Encontrá-las de mãos dadas com os delírios
quotidianos adolescentes é coisa ainda mais difícil, mas, como nos ensinam os
My Little Airport, não impossível. Como diziam os outros, naquele mês de Maio,
“sê realista, exige o impossível”. A música pop, afinal, é uma arma. De
plástico, mas uma arma.
Publicado no jornal Hoje Macau no dia 14 de Outubro de 2011
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