sábado, 8 de agosto de 2015

My Little Airport – Super pop de intervenção

 

Que a cantiga é uma arma, já se sabia. Que essa arma não tem que ser brandida apenas por hirsutos homens de bigode farfalhudo e soar (mal) como “A Internacional” cantada às criancinhas, dava para desconfiar; mas, podem as criaturas de arma em riste comportarem-se de forma adorável, cândida e gentil? Com certeza.

2001, Hong Kong Shue Yan University. Num clássico “boy meets girl”, o curso de Jornalismo e Comunicação junta Ah P (Lam Pang) e Nicole Au Kin-ying. Amor pela música à primeira audição. Dois anos depois, os My Little Airport dão o primeiro concerto, transformando-se na coqueluche “indie pop”do território. A história conta-se em traços simples, como o bom jornalismo ensina e como a música dos My Little Airport continua a ser, ainda hoje, dez anos depois do duo ter nascido.

No último mês de Agosto, Ah P e Nicole lançaram o sexto álbum da sua discografia, o quinto de originais (se não contarmos a compilação “Zoo is Sad, People Are Cruel”, editada pela espanhola Elefant Records).

“Hong Kong is One Big Shopping Mall” tem tudo o que os anteriores discos dos My Little Airport têm. Estão lá as letras em chinês, inglês, “chinglish” e francês, o estilo confessional e vagamente entediado de quem lê um diário que não é lá muito excitante, o “ensemble” minimalista regido pelo órgão Casio que ora desfalece sem bateria, ora irrompe vitaminado, as melodias pegajosas, a pose de “dandy” que se enganou no ‘casting’ e no tempo e aparece num filme francês a preto e branco, a poesia ‘naïf’, a ironia, o humor “deadpan”, a melancolia, a ambiguidade e a insuspeita consciência política mordaz que não pressentíamos possível ser trauteada no meio de “la la las”.

A brincar dizem-se coisas sérias e os My Little Airport até brincam com coisas sérias, revelando-nos que a inocência é a arma mais perigosa, exactamente porque torna as verdades mais cruas e, por isso, mais cruéis. O que Ah P e Nicole estamparam na capa do último álbum sob a forma de título, sem mais explicações, é uma espécie de retorno aos tempos áureos dos “slogans” que o Maio de 68 espalhou nas ruas de Paris.

O pico da irreverência que tornou os delicodoces My Little Airport nos mais temerários “punks” da Região Administrativa Especial de Hong Kong é, muito provavelmente, o álbum “Poetics – Something Between Montparnasse and Mongkok”, de 2009.

Uma das 16 canções tem o sugestivo título “Divvying up Stephen Lam's $300000 Salary”, no qual se propõe dividir o principesco ordenado do então secretário para os Assuntos Constitucionais e actual secretário-chefe do governo de Hong Kong.

Mas o ensejo de deitar mão comunista a 300 mil dólares é coisa de meninos nada subversivos quando comparado com a cantiga que fecha “Poetics ...”: “Donald Tsang, please die”. Foi assim, apesar de tudo, com boa educação (atente-se na polidez da interjeição “please”), que os My Little Airport decidiram juntar a voz ao protesto dos que se sentiram revoltados pelo facto de o chefe do executivo de Hong Kong ter desvalorizado a necessidade de continuar a assinalar o massacre de Tiananmen, lembrando que “aconteceu há muitos anos” e que o desenvolvimento da China significou “prosperidade económica” para a antiga colónia britânica.


Hoje, encontrar consciência política e canções de protesto nas centenas ou milhares de discos que, diariamente, inundam o mercado é tarefa difícil. Encontrá-las de mãos dadas com os delírios quotidianos adolescentes é coisa ainda mais difícil, mas, como nos ensinam os My Little Airport, não impossível. Como diziam os outros, naquele mês de Maio, “sê realista, exige o impossível”. A música pop, afinal, é uma arma. De plástico, mas uma arma.

Publicado no jornal Hoje Macau no dia 14 de Outubro de 2011

Sem comentários:

Enviar um comentário