“É mais fácil descobrir um mundo novo do que
uma mulher ilustrada”, suspirava Camilo Castelo Branco no opúsculo “Coisas Que
Só Eu Sei”, de 1853. Naquela altura, Baudelaire ainda não tinha divagado sobre
os “paraísos artificiais”, e, também por isso, não é crível que o escritor
português, provocador e, no bom fundo, sempre disponível para um amor de
perdição, escarnecesse da “metafísica do inebriante” ensaiada pelo francês. No
século XIX, descobrir um mundo novo era tão fácil ou tão difícil como agora –
depende de que “mundo novo” falamos.
Se lhe disserem que descobriram uma “ilha
Balear” na Indonésia, o mais avisado é não tomar o anúncio de forma literal,
isto é, não congeminar logo um fenómeno de geografia paranormal ou a notícia de
um “admirável mundo novo”. Por outro lado, também não é obrigatório tomar
o seu interlocutor por um delirante cronista de “paraísos artificiais”.
Imagine, antes, que lhe falam de música. Aí o caso muda de figura e tudo é, de
súbito, possível. Até, lá está, um “mundo novo”.
Foi há 23 anos, em Julho de 1988, que a
Mixmag, revista britânica dedicada à música electrónica e à “club culture”, deu
à estampa a primeira história do “balearic beat”. Quando Pete Tong e Paul
Oakenfold assinaram “The Balearic Beat Story”, o fenómeno musical que deixou a
pacata Ibiza em lugar de destaque nas coordenadas da geografia dos sons estava
em gestação há já vários anos.
Como recorda Bill Brewster (“In Search of
Balearic”, 2008), a ilha mediterrânica que foi porto de abrigo de cartagineses,
fenícios, romanos, vândalos, árabes e judeus começou, desde finais dos anos
1960, a acolher também os andarilhos do nosso tempo. Muitos “hippies” e demais
“hipsters” atravessaram o Atlântico e a Europa para serem recebidos em Ibiza
por uma fauna autóctone enfeitada com a velha e decadente aristocracia europeia
que ali procurava o refúgio, a tolerância e a paz que tornavam possível uma
vida algures entre a temperança e a extravagância. (Partes desse imaginário estão
bem documentadas em dois filmes que têm Ibiza como o centro da acção: “More”,
realizado por Barbet Schroeder, em 1969, com banda sonora original dos Pink
Floyd, e “F For Fake”, o último de Orson Welles, de 1974).
A partir da década de 1950, Ibiza foi um dos
redutos favoritos de estrelas do cinema europeu e americano, artistas,
“playboys” e “playgirls”, ricos e muito ricos. Por quase 35 anos, Ibiza
permaneceu um segredo bem guardado trocado entre uns quantos privilegiados.
Durante esse tempo, outros segredos foram sendo passados, mas sob a forma de
música e por um DJ de um tempo em que não havia DJ, Jean-Claude Maury. Foi ele
o primeiro responsável pela música no primeiro clube nocturno de Ibiza, o
Pacha, aberto em 1967.
O nome de Maury é apontado como a grande
influência pelo homem que haveria de dar continuidade ao legado do francês,
levando-o para domínios inimagináveis. DJ Alfredo – é asim que, ainda hoje, é
conhecido o argentino Alfredo Fiorito. Chegou a Ibiza jornalista para passar
uma temporada e de lá sai apenas, por estes dias, para ser embaixador do som
que ajudou a tornar característico da ilha Balear e que deu a volta à cabeça de
dois DJ britânicos que decidiram contar ao mundo, nas páginas da Mixmag, o que
encontraram em Ibiza no Verão de 1987. Tong e Oakenfold estavam de férias na
companhia de um grupo de amigos que, no regresso a Londres, espalharam a boa
nova. Um desses comparsas, também DJ, Johnny Walker, recordou a Bill Brewster
como foi a epifania: “Alfredo misturava música house com discos de bandas
‘indie’, rock com guitarras, músicas pop de Madonna e George Michael com discos
absolutamente desconhecidos, mas que hoje são clássicos ‘balearic’”. Havia uma
doutrina, ainda que nebulosa: “‘Baleárico’ é todo o disco que pode funcionar
numa pista de dança se tiver uma determinada vibração”, um certo “je ne sais
quoi”, poder-se-ia dizer, em homenagem ao francês Maury. A indefinição abriu os
horizontes.
O chapéu “baleárico” tinha as abas largas e à
sua sombra cabia tanto quanto a imaginação alcançasse e a pista de dança
consentisse. Em Ibiza, uma das justificações para esta “largura de banda” podia
vir da confluência de culturas e do culto do bem-estar tolerante. Já em meados
da primeira década de 2000, o revivalismo deste espírito explica-se tanto pela
tendência natural de, ciclicamente, aproveitar o passado, como pela abundância
e excesso de músicas e progressivo alargamento do espaço das especificidades e
especialidades.
Ainda que a “segunda vida” da “balearic beat”
tenha conseguido uma visibilidade global e em nada comparável aos primeiros
tempos, subsistem ainda “novos mundos” à espera de serem descobertos. Um deles,
inesperadamente (ou talvez não) aguarda os aventureiros do som na Indonésia. É
aí que um grupo crescente de músicos e produtores faz alguma da mais
interessante e eclética música que nasceu com as reanimadas vibrações da eterna
“balearic beat”. (Continua)
Publicado no jornal Hoje Macau no dia 23 de Setembro de 2011
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