sábado, 8 de agosto de 2015

O dub das estepes



Quando tudo, ou quase tudo, já foi inventado, sempre que assoma algo de aparentemente original surge o aviso de que estamos perante uma “reinvenção”. As duas últimas décadas de música popular foram feitas de recriações, revisões e uma ou outra revolução digna do nome, mas o tempo que passou serviu entretanto para confirmar suspeitas antigas: é nas margens da enxurrada que frequentemente acostam as propostas mais interessantes e inovadoras. Quem esteve atento às “propostas alternativas” que vieram dessas margens ao longo dos últimos tempos deu ainda pela ubiquidade e assiduidade de Jah Wobble. Desde finais dos anos 1970, altura em que se apresentou ao mundo como baixista dos Public Image Limited, a aventura pós-Sex Pistols de John Lydon, o próprio Wobble terá dificuldade em recordar todos os músicos com quem colaborou e os discos em que participou, do “rock” ao “dub”, do “pós-punk” à “world music”, mas sempre, sempre, à margem do turbilhão, às vezes em contra-corrente e, invariavelmente, à frente do seu tempo.

Do homem que já fez tudo, ou quase tudo, esperar-se-ia, portanto, o que veio em 2008 na forma de “Chinese Dub”, o disco que Jah Wobble gravou com a Chinese Dub Orchestra. “Esperar-se-ia”, porque já no início da década de 2000 Wobble tinha enrolado “dub” com cânticos tradicionais asiáticos. Todavia, mesmo que “Chinese Dub” seja a continuação lógica dessas experiências, a verdade é que o disco de 2008 abriu um novo capítulo na carreira do inglês e no panorama da chamada “música do mundo”.

A colaboradores habituais e ao seu baixo (“o rei dos instrumentos”, diz), Jah Wobble juntou virtuosos de instrumentos tradicionais chineses, entre os quais Zi Lan Liao (mulher de Wobble e exímia na arte do Guzheng), e cantores tradicionais, como Gu Yinji e Wang Jinqi. Cânticos e músicas tradicionais da Mongólia Interior e de Yunnan, lamentos e exaltações das estepes e das montanhas, tudo compassado pela cadência narcótica dos vapores “dub”, essa música nascida nos laboratórios de som jamaicanos. A espiritualidade da música tradicional oriental encontra neste torpor caribenho um intérprete fidedigno dos estados de levitação incorpórea, a meio caminho entre a hipnose e o êxtase – uma receita potente contra maleitas e maus espíritos musicais, afugentados com a trepidação imperturbável do baixo de Wobble.

Encontrado o bom remédio, depois da aventura com a Chinese Dub Orchestra, Wobble formou o Nippon Dub Ensemble, com quem, em 2010, editou “Nippon Dub”. Os propósitos e as técnicas usadas são os mesmos de “Chinese Dub”, mas, de novo, há mais vida para além da fórmula.
Neste “dub nipónico”, vem o próprio Jah Wobble, no libreto que acompanha o disco, chamar a atenção para o belo carácter que está na capa do álbum, “Ma”, sinónimo para aquilo que, no Ocidente, é designado por “espaço sensorial”. “É o espaço que sentimos entre notas musicais, ou entre as árvores numa pintura”. Mas também é mais do que isso. É o que não fica dito, mas apenas sugerido: um espaço virtualmente infinito onde se estende o vazio, ou o “não-pensamento”. Um lugar de libertação e uma espécie de sabedoria da serenidade que tem raízes chinesas, mas a que os japoneses acrescentaram idiossincrasias. Uma delas é o minimalismo, a redução até à essência. É uma estética de restrições e contenções, austera, a que se junta outro traço nipónico: o sentimento de melancolia e tristeza, expresso na música através dos tons menores, mesmo se o motivo é de celebração, como quando florescem as cerejeiras. Belas, mas efémeras, as flores transformam-se numa metáfora, numa lembrança da inevitabilidade de que tudo é transitório, efémero e mortal.

E tudo isto é comemorado neste disco, mais um volume imprescindível de um verdadeiro encontro de culturas onde os diferentes elementos têm espaço para respirar e são tratados com respeito e deferência – um diálogo em tom encantatório que se expande no balanço, fluidez e “groove” da música que dança.

Creio que o melhor elogio que se pode deixar a estes dois discos é dizer que, depois de ouvi-los, parece que o “dub” e as músicas tradicionais chinesa e japonesa nasceram a soar assim.

Publicado no jornal Hoje Macau no dia 29 de Abril de 2011 


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