domingo, 9 de agosto de 2015

Para além do bem e do mal

Não é segredo nenhum. No final da década de 1930, em plena guerra sino-japonesa, o poeta W.H. Auden esteve em Macau. Na companhia de Christopher Isherwood, Auden viajou pela então República da China no momento em que, pela segunda vez em poucas décadas, a vontade de domínio imperial do Japão desencadeava nova guerra. “Journey to a War”, escrito a duas mãos entre Auden e Isherwood, foi o livro que resultou da aventura. Ao registo diarístico do companheiro de viagem, Auden juntou sonetos. Um é dedicado a Macau.

“A weed from Catholic Europe, it took root
Between the yellow mountains and the sea,
And bore these gay stone houses like a fruit,
And grew on China imperceptibly.

Rococo images of Saint and Saviour
Promise her gamblers fortunes when they die;
Churches beside the brothels testify
That faith can pardon natural behaviour.

This city of indulgence need not fear
The major sins by which the heart is killed,
And governments and men are torn to pieces:

Religious clocks will strike; the childish vices
Will safeguard the low virtues of the child;
And nothing serious can happen here.”

Mais tarde, Auden haveria de rever o poema. Os terceiro e quarto versos, por exemplo, foram mudados para “Its gay stone houses an exotic fruit/A Portugal-cum-China oddity”, e onde havia “This city of indulgence...” ficou “A town of such indulgence need not fear/Those mortal sins by which the strong are killed/And limbs and governments are torn to pieces”.

Como nota George Monteiro, da Universidade de Brown, com as alterações Auden pintou um “diferente quadro moral de Macau”, na versão mais recente apresentada já num contexto de “grandes guerras”. De “grande destruição”.

Os “homens” que se despedaçam são agora “membros”; os “pecados maiores” passaram a “mortais”. Mas a cidade “não precisa de temer”. Intocável, a conclusão permanece:  “And nothing serious can happen here”.

Será? Por quê?  Foi a entrega ao prazer? Foram as “igrejas ao lado de bordéis”, testemunhando que “a fé perdoa o comportamento natural”, pecados maiores ou mesmo capitais? Por que será que “nada de grave pode acontecer aqui”? Nada de grave acontece aqui?

Qualquer coisa de pouco séria Auden entreviu. Terá sido a “erva daninha que se enraizou” fora da sua natureza, longe do chão onde pertenceria e onde estava destinada a crescer. Terá sido a “esquisitice”, ou, de forma mais benigna (mas ainda assim acusatória), a “extravagância” de Portugal e da China, duas realidades opondo-se, contrariando-se, cultural e moralmente. Que sentido apreender e fazer?

Não há castigo para os pecados que são muitos e grandes e cometidos sem um módico de vergonha ou arrependimento. Os bordéis são construídos paredes meias com igrejas e o que se passa nos prostíbulos ouve-se nos confessionários. Todavia, nesta história não há penitentes, apenas incautos.
Nem o que de mais  “grave” ou “sério” existirá – as pessoas e as suas vidas, que, como os “governos”, noutros sítios são “desfeitas em pedaços”, precisam de temer ou sequer fingir qualquer sentimento respeitoso. Livres do “mal”, estamos também livres do “bem”. Resta o quê?

Publicado no jornal Hoje Macau em Abril de 2014 

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