Foi um Verão quente. Meses após a detenção por
terem entrado numa catedral de Moscovo e cantado uma “oração punk” na qual
pediram à Virgem Maria para que corresse com Vladimir Putin do poder e, de
caminho, para que a Mãe de Jesus se tornasse feminista, três elementos da banda
“punk rock” Pussy Riot foram condenadas a dois anos de cárcere por vandalismo.
Nesse mês de Agosto em que a sentença foi
proferida, o mundo reviveu os tempos em que a cantiga era uma arma e percebeu
que, afinal, ainda há “punks” como antigamente e regimes que, apesar de
organizarem eleições, têm mão férrea. Mas, feliz e infelizmente, abundam
exemplos dos respectivos casos.
No mês de Março em que Nadejda Tolokonnikova,
Ekaterina Samoutsevitch e Maria Alekhina foram presas, o jornal britânico The
Guardian deu à estampa um artigo assinado por John Harris dando conta dos casos
que mostram “a vitalidade de uma expressão musical que, nos países de onde é
originária, apenas é, hoje, um motivo de paródia”.
Além da Rússia, as histórias a que o autor se
refere passam-se noutros países onde inusitados movimentos “punk” resistem num
ambiente político e social altamente adverso a expressões de individualismo e
de liberdade: Indonésia, Birmânia e Iraque. Não, a China não constava da lista
dos países inimigos dos “punks”.
Uma consulta ao excelente sítio
www.freemuse.org (organização de defesa da liberdade de expressão dos músicos
de todo o mundo) indica-nos que, na China, as preocupações do regime não usam
cristas coloridas na cabeça, cadeados ao pescoço e alfinetes em vez de brincos.
No que diz respeito à música, a preocupação do
aparelho totalitário e repressivo de Pequim vira-se para outras direcções: os
artistas tibetanos (só este ano, as autoridades prenderam, pelo menos, três
cantores da região autónoma, onde, entretanto, foram implementadas medidas com
o objectivo de restringir a publicação de música e outros conteúdos, sobretudo
“online”); os “temas sensíveis” (em Outubro do ano passado, a estreia de uma
ópera sobre Sun Yat-sen, o primeiro presidente da China, foi cancelada à ultima
hora porque as autoridades consideraram que a música era “inapropriada”, de
acordo com os relatos da imprensa oficial); e o “conteúdo vulgar e de mau
gosto” (o que levou, por exemplo, em Agosto do ano passado, a que o Ministério
da Cultura chinês tivesse posto a circular uma lista de cem canções proibidas,
entre as quais temas dos “ocidentais” Lady Gaga, Backstreet Boys, Britney
Spears, Katy Perry e muitas outras – a maioria –, de artistas de Hong Kong e
Taiwan). Apesar de o “punk” ter consciência política desde os ingleses The
Clash, na China, o caso parece ser outro.
“Há muitos temas que o ‘punk rock’ não tem
abordado na China. Abuso de menores, violência doméstica, racismo, direitos dos
trabalhadores, eleições. Temas globais como a Coreia do Norte, o belicismo, o
petróleo, o planeta.” David O’Dell em discurso directo numa entrevista
publicada no página electrónica da editora de Pequim Genjing Records,
especializada em discos de vinil.
Texas David, como é conhecido na China, lançou
este Verão o livro “Inseparable – the Memoirs of an American and the Story of
Chinese Punk Rock”. A obra segue o movimento “punk” desde os primeiros dias, em
1995, até que o norte-americano abandonou definitivamente Pequim, em 2002.
Se, actualmente, as bandas “punk” chinesas são
algo assépticas em termos políticos ou ideológicos, o mesmo não se pode dizer
das que estão na génese do movimento (Underbaby ou Catcher in the Rye, por
exemplo). Na mesma entrevista, O’Dell recorda que havia uma “mensagem nas
letras cheias de calão, sarcasmo e histórias de pressões políticas que
retratavam uma vida urbana e chinesa, única”.
Ora, é precisamente a especificidade das
“características chinesas” (para usar a expressão oficial do regime) que leva o
investigador holandês Jeroen De Kloet a usar a expressão “paradoxo” para
descrever o “rock” na China.
Num artigo publicado em 2010, no sítio
www.norient.com, De Kloet argumenta que “a mitologia rock viajou bem até à
China, dada a insistência das bandas em fazerem música que vem directamente do
coração.” Mas, continua, “o que se passa no rock chinês não é tanto o lado
político, mas sim a noção do próprio rock e a construção de uma identidade rock
chinesa”. Para o autor, as bandas “teimam em fazer música internacional,
desafiando as especificidades locais.” Contudo, acrescenta, “esse desejo de
alargar o mercado do rock chinês além das fronteiras do país ecoa a vontade do
Partido Comunista de voltar a colocar a China no mapa da política mundial”. Ou
seja, o “punk rock” na China desdobra-se em dicotomias: simultaneamente
ocidental e chinês, rebelde e obediente, global e local. E, conclui Jeroen De
Kloet, “só quando conseguirmos reflectir sobre estes paradoxos poderemos
perceber o poder do rock, um poder que é bastante mais ambíguo do que a
mitologia que o acompanha nos faz crer”.
Para citar de novo o investigador holandês, “é
tentador analisar o rock na China nos termos de uma rebelião política.” No
entanto, “por mais romântica que seja essa leitura, o mundo do rock na China
não é unívoco”.
No passado dia 19 de Agosto, Xangai recebeu o
seu primeiro festival de música “punk”, algo que Pequim acolhe há já nove anos.
Na capital económica da China, num domingo de Agosto deste ano, tocaram bandas
de Pequim, Nanjing, Changsha, além de Xangai e outras japonesas, que atraíram
centenas (milhares?) de “punks” chineses em romaria. Não houve detidos e não
houve palavras censuradas nos motores de busca chineses. Mais brado houve
quando uma islandesa com ares de ser mitológico e inofensivo, na mesma cidade
de Xangai, num concerto uns anos antes, gritou “Tibet! Tibet!”, no final de uma
canção chamada “Declare Independence”.
Este país não é para “pussy riots”.
Publicado no jornal Hoje Macau no dia 21 de Setembro de 2012
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