sábado, 8 de agosto de 2015

Punk na China: “No Pussy Riot Blues”


Foi um Verão quente. Meses após a detenção por terem entrado numa catedral de Moscovo e cantado uma “oração punk” na qual pediram à Virgem Maria para que corresse com Vladimir Putin do poder e, de caminho, para que a Mãe de Jesus se tornasse feminista, três elementos da banda “punk rock” Pussy Riot foram condenadas a dois anos de cárcere por vandalismo.

Nesse mês de Agosto em que a sentença foi proferida, o mundo reviveu os tempos em que a cantiga era uma arma e percebeu que, afinal, ainda há “punks” como antigamente e regimes que, apesar de organizarem eleições, têm mão férrea. Mas, feliz e infelizmente, abundam exemplos dos respectivos casos.

No mês de Março em que Nadejda Tolokonnikova, Ekaterina Samoutsevitch e Maria Alekhina foram presas, o jornal britânico The Guardian deu à estampa um artigo assinado por John Harris dando conta dos casos que mostram “a vitalidade de uma expressão musical que, nos países de onde é originária, apenas é, hoje, um motivo de paródia”.

Além da Rússia, as histórias a que o autor se refere passam-se noutros países onde inusitados movimentos “punk” resistem num ambiente político e social altamente adverso a expressões de individualismo e de liberdade: Indonésia, Birmânia e Iraque. Não, a China não constava da lista dos países inimigos dos “punks”.

Uma consulta ao excelente sítio www.freemuse.org (organização de defesa da liberdade de expressão dos músicos de todo o mundo) indica-nos que, na China, as preocupações do regime não usam cristas coloridas na cabeça, cadeados ao pescoço e alfinetes em vez de brincos.

No que diz respeito à música, a preocupação do aparelho totalitário e repressivo de Pequim vira-se para outras direcções: os artistas tibetanos (só este ano, as autoridades prenderam, pelo menos, três cantores da região autónoma, onde, entretanto, foram implementadas medidas com o objectivo de restringir a publicação de música e outros conteúdos, sobretudo “online”); os “temas sensíveis” (em Outubro do ano passado, a estreia de uma ópera sobre Sun Yat-sen, o primeiro presidente da China, foi cancelada à ultima hora porque as autoridades consideraram que a música era “inapropriada”, de acordo com os relatos da imprensa oficial); e o “conteúdo vulgar e de mau gosto” (o que levou, por exemplo, em Agosto do ano passado, a que o Ministério da Cultura chinês tivesse posto a circular uma lista de cem canções proibidas, entre as quais temas dos “ocidentais” Lady Gaga, Backstreet Boys, Britney Spears, Katy Perry e muitas outras – a maioria –, de artistas de Hong Kong e Taiwan). Apesar de o “punk” ter consciência política desde os ingleses The Clash, na China, o caso parece ser outro.

“Há muitos temas que o ‘punk rock’ não tem abordado na China. Abuso de menores, violência doméstica, racismo, direitos dos trabalhadores, eleições. Temas globais como a Coreia do Norte, o belicismo, o petróleo, o planeta.” David O’Dell em discurso directo numa entrevista publicada no página electrónica da editora de Pequim Genjing Records, especializada em discos de vinil.
Texas David, como é conhecido na China, lançou este Verão o livro “Inseparable – the Memoirs of an American and the Story of Chinese Punk Rock”. A obra segue o movimento “punk” desde os primeiros dias, em 1995, até que o norte-americano abandonou definitivamente Pequim, em 2002.

Se, actualmente, as bandas “punk” chinesas são algo assépticas em termos políticos ou ideológicos, o mesmo não se pode dizer das que estão na génese do movimento (Underbaby ou Catcher in the Rye, por exemplo). Na mesma entrevista, O’Dell recorda que havia uma “mensagem nas letras cheias de calão, sarcasmo e histórias de pressões políticas que retratavam uma vida urbana e chinesa, única”.
Ora, é precisamente a especificidade das “características chinesas” (para usar a expressão oficial do regime) que leva o investigador holandês Jeroen De Kloet a usar a expressão “paradoxo” para descrever o “rock” na China.

Num artigo publicado em 2010, no sítio www.norient.com, De Kloet argumenta que “a mitologia rock viajou bem até à China, dada a insistência das bandas em fazerem música que vem directamente do coração.” Mas, continua, “o que se passa no rock chinês não é tanto o lado político, mas sim a noção do próprio rock e a construção de uma identidade rock chinesa”. Para o autor, as bandas “teimam em fazer música internacional, desafiando as especificidades locais.” Contudo, acrescenta, “esse desejo de alargar o mercado do rock chinês além das fronteiras do país ecoa a vontade do Partido Comunista de voltar a colocar a China no mapa da política mundial”. Ou seja, o “punk rock” na China desdobra-se em dicotomias: simultaneamente ocidental e chinês, rebelde e obediente, global e local. E, conclui Jeroen De Kloet, “só quando conseguirmos reflectir sobre estes paradoxos poderemos perceber o poder do rock, um poder que é bastante mais ambíguo do que a mitologia que o acompanha nos faz crer”.

Para citar de novo o investigador holandês, “é tentador analisar o rock na China nos termos de uma rebelião política.” No entanto, “por mais romântica que seja essa leitura, o mundo do rock na China não é unívoco”.

No passado dia 19 de Agosto, Xangai recebeu o seu primeiro festival de música “punk”, algo que Pequim acolhe há já nove anos. Na capital económica da China, num domingo de Agosto deste ano, tocaram bandas de Pequim, Nanjing, Changsha, além de Xangai e outras japonesas, que atraíram centenas (milhares?) de “punks” chineses em romaria. Não houve detidos e não houve palavras censuradas nos motores de busca chineses. Mais brado houve quando uma islandesa com ares de ser mitológico e inofensivo, na mesma cidade de Xangai, num concerto uns anos antes, gritou “Tibet! Tibet!”, no final de uma canção chamada “Declare Independence”.

Este país não é para “pussy riots”.

Publicado no jornal Hoje Macau no dia 21 de Setembro de 2012

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